«A casa da minha infância foi um "monte" alentejano, próximo do rio Ardila, a cerca de quatro quilómetros da branca cidade de Moura. A frontaria dava para um pátio empedrado, de onde ainda se vêem, num alto, a eira, e mais perto, outras construções: a habitação do feitor, a cavalariça, a vacaria, o galinheiro, o curral dos porcos, o alpendre onde guardavam o trem, o churrião e vários carros de lavoura e alfaias agrícolas, a charrua, a debulhadora, o trilho... A toda a volta da casa, mansas oliveiras, quase cinzentas por tempo fosco, mas de prata quando o sol se mostra. E, quase encostada à casa, as olaias, muito visitadas pelos pardais sobretudo à noitinha, e a suave glicínia, trepando por uma parede caiada, junto a janelas de grega do quarto dos meus pais. Foi nesse cenário rústico, que de Inverno acordava muitas vezes branco de geada e onde a Primavera vinha cedo, de ouro e azul, sobre a verde germinação das searas, que decorreram os anos mágicos da minha infância, escutando os cantos e os dizeres dos camponeses, brincando com os pastorinhos das ovelhas e das vacas, galopando pelos montados do outro lado do rio, escalando cabeços cobertos de estevas e mistério, descobrindo os caminhos que levam ao Guadiana, a imensa herdade da Rola, aos longes de Espanha. Entre a catequização da minha professora, a D. Guilhermina, piedosa senhora docemente ridícula no seu outono de vida cheio de folhos, fitas e sonhos gorados, e a rebeldia franca dos trabalhadores ranchos, que pelo nosso "monte" passavam, vindos da Amieira e de Portel, comecei a tactear a vida, a dar pela injustiças sociais mesmo ao meu lado, a crescer entre cheiros e sons, visões, bem diferentes, mas misturadas, do paraíso e do inferno. Sentimentos em guerra nasciam dentro de mim e aos meus momentos contemplativos do fim do dia, após as horas de estudo ou os passeios pela beira do Ardila, a pé ou a cavalo, sucediam-se interrogações sem resposta. Deixara de acreditar nos mitos cristãos e procurava outras crenças, outros valores. Era o fim da minha infância, na altura em que meu pai ia ter de hipotecar a herdade (salvando-se anos depois do descalabro) e nós já víamos pela frente a partida para Lisboa, o liceu, o "exílio" entrecortado por breves férias no Alentejo.»
Urbano Tavares Rodrigues , in "A Casa da Minha Infância", ( "Seixo Review: Revista Semestral de Artes e Letras", n.º 6, s/d).
Sobre o autor
"Ficcionista, cronista, ensaísta, crítico literário e poeta, URBANO Augusto TAVARES RODRIGUES nasceu em Lisboa (freguesia de Santa Catarina), a 6 de Dezembro de 1923, e faleceu na mesma cidade (Hospital dos Capuchos), a 9 de Agosto de 2013.
Filho do jornalista e escritor republicano Urbano da Palma Rodrigues (que foi chefe de gabinete de Afonso Costa) e de Maria da Conceição Tavares, senhora devota, viveu, dos três aos onze anos de idade, na herdade da família, o Monte da Esperança, na margem esquerda do Guadiana, a escassos quilómetros da sede do concelho, Moura. O contacto íntimo com a Natureza alentejana e a percepção da exploração de que era objecto a gente mais humilde marcariam indelevelmente a sua sensibilidade e índole humanista.
Depois do 25 de Abril, aquando da Reforma Agrária, em coerência com o seu ideário e com o lema "a terra a quem a trabalha", Urbano Tavares Rodrigues despojou-se das suas propriedades no Alentejo. Em entrevistas recentes, confessou: «Éramos três. O meu irmão Jorge não tinha as mesmas ideias – era um homem que se interessava fundamentalmente pelo dinheiro. Para podermos dar ao Jorge a parte dele vendemos aquilo a um primo nosso, grande agrário. Comprava se lhe garantíssemos que não lhe ocupavam as terras. Garantimos. A nossa parte, minha e do Miguel [jornalista Miguel Urbano Rodrigues], ficou para o sindicato dos trabalhadores agrícolas do distrito de Beja. Pedi licença para tirar da minha parte uma pequena quantia para ajudar a minha filha a comprar uma casa.» (entrevista concedida a Anabela Mota Ribeiro, in "Jornal de Negócios", 7 Set. 2012). «Foi um gesto romântico, separei-me de uma casa à qual tinha um amor profundo. Se não fosse isso era hoje um homem rico. Mas não quero saber. Fiz aquilo que achava certo e coerente com as minhas convicções.» (entrevista concedida a Luís Leal Miranda, in jornal "I", 4 Fev. 2010).
[Fontes principais: "Infopédia" e "Dicionário da Literatura Portuguesa", organização e direcção de Álvaro Manuel Machado, Editorial Presença, 1996]
adoro
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