terça-feira, 31 de outubro de 2023

Não há boas maneiras nas guerras

 

Não há boas maneiras nas guerras
por Eugénio Lisboa
“Quando se diz que, nas guerras, deve haver boas maneiras, códigos de conduta, separação de civis e combatentes, Cartas das Nações Unidas de 1945, sobre o genocídio, a Convenção de Genebra, de 1949, para tornarem as guerras mais “decentes”, mais “cuidadosas”, mais “cavalheirescas”, está-se simplesmente a vender uma vergonhosa e hipócrita mentira. Nas guerras, nunca há boas maneiras e os actuais e poderosíssimos meios de destruição, ao dispor dos exércitos de quase todos os países, não permitem finas distinções entre civis e combatentes, entre massacre e genocídio, entre guerra limpa e guerra suja. A segunda guerra mundial foi suja, a guerra do Vietnam foi suja, a guerra do Iraque foi suja, as guerras do Afeganistão foram sujas, as guerras coloniais foram sujas e a actual guerra israelo-palestiniana está a ser sujíssima. Dos dois lados. Sempre dos dois lados. Em todas elas se praticaram e praticam as maiores e desnecessárias atrocidades. Não dá para dizer quem tem razão. Quem mata, esteja de que lado for, não tem razão. Só tem razão quem morre e não devia morrer. As razões que se dão para uma guerra são sempre desrazões. A Batalha de Ourique, a Batalha de Aljubarrota, provavelmente, foram também sujas, embora em escala menor porque se matava menos e, nessas, não se confundia civis com combatentes. Mas TODA a guerra é inerentemente suja e infame. O recurso à guerra, nas sociedades modernas, deveria ser considerado crime e evitado a todo o custo.  Produzir uma espingarda, ou um canhão ou um caça, como disse Dwight Eisenhower, que era um general que ganhou uma guerra, é tirar pão a quem tem fome e é tirar aquecimento a quem tem frio. Ou se proíbem as guerras ou não se proíbem. Mas, enquanto se não proibirem, ninguém tem direito à boa consciência dos que inventam a história da carochinha das “leis da guerra”. Na guerra não há leis, a não ser a do mais forte, que é uma lei da selva. Permitir a um psicopata como Putin ou um autista perigoso, como Kim Jong Un a posse de armas nucleares  (e, em suma, a todos os que as possuem) é realmente andar a brincar à beira do abismo. Só uma total impotência internacional de pôr cobro a esta insensatez pode justificar que se tenha chegado a 2023, com guerras santas, apoiadas por um islamo-esquerdismo muito mau ou por um não menos mau israelo-direitismo. As finas distinções para salvar a face da barbaridade que é a guerra são meros eufemismos para serem usados pelos fautores da guerra, que querem dormir sossegados. Nas guerras, esses códigos nunca são respeitados, nem por atacantes nem por atacados. No Vietnam fizeram-se aos vietnamitas as maiores atrocidades e no Afeganistão, durante a invasão, os afegãos serravam as pernas e os braços aos prisioneiros soviéticos, o que não impede a actual love story entre o Islão e uma certa esquerda (o tal islamo-esquerdismo).
Meus caros senhores e senhoras, nada de hipocrisias, encarem a verdade de frente: as guerras, mesmo as “justas” são crimes abomináveis. Basta ver o rosto aterrado e emudecido de uma criança na faixa de Gaza. Culpado? HAMAS e ISRAEL. Os criminosos estão SEMPRE dos dois lados. Hitler poderia perfeitamente ter sido travado a tempo e a França até estava mais bem armada. E a primeira guerra mundial também foi tudo menos inevitável. A inevitabilidade das guerras é outra história da carochinha. Compre-a quem quiser.”
Eugénio Lisboa, 31.10.2023

Pessoas Decentes

Leonardo Padura
Li, avidamente, o último livro de Leonardo Padura, Como Poeira ao Vento . Fascinou-me a história daquele grupo de amigos que , ao longo de uma vida , superou o exílio e a luta por uma vida diferente em Cuba e no exílio. Um clã que nos apaixona pela estreiteza de laços e pela variedade de personalidades que os liga. Uma escrita rica que traça uma época conturbada, com realismo e fidedignidade. Leonardo Padura conquistou-me.
Saiu , neste mês de Outubro , o seu último livro , Pessoas Decentes, publicado pela Porto Editora.
Numa entrevista ao DN , que se segue, o autor fala deste livro e do seu país.

"Cuba criou uma cultura artística e literária que é muito maior do que a geografia da ilha"
por Leonídio Paulo Ferreira
"Em Pessoas Decentes, a personagem principal volta a ser o detetive Mario Conde, e tudo gira em torno de um crime que coincide com a visita de Obama a Havana em 2016. Mas há uma outra história, passada em 1910, na Cuba recém-independente. Leonardo Padura conversou com o DN sobre o livro, a pujança cultural do país, e também sobre a sua liberdade de ser crítico
Há uma palavra que marca este livro, que é "abominável", referindo-se a Reynaldo Quevedo. Esta figura sintetiza o pior que houve na revolução cubana?
Estamos a falar de um romance e creio que é necessário colocar o leitor em contexto, o leitor da entrevista, quero dizer. Os que já leram o romance entenderão perfeitamente que se desenvolve em dois tempos históricos. Uma história ocorre no ano de 2016, em redor da visita histórica que fez o presidente Barack Obama dos Estados Unidos a Cuba, e outra que se desenvolve no ano de 1910, muito pouco depois da independência de Cuba, que ocorre em 1902. E esta última desenvolve-se em redor da figura histórica real que foi Alberto Yarini y Ponce de León, de alguma forma o rei da prostituição em Havana, uma personagem bastante complexa. Na outra história, a de 2016, a personagem que já usei em dez novelas, Mario Conde, tem de realizar uma investigação porque apareceu morto, o abominável Reynaldo Quevedo. O abominável Reynaldo Quevedo é uma personagem de ficção que está conformada por elementos, comportamentos, atitudes e realizações de um grupo de pessoas que, sobretudo, nos Anos 70 em Cuba, dirigiram a política cultural. Foi um momento em que se produziu a sovietização da cultura e da política cubana em geral. A partir do ano de 1971 começa este processo que já vinha de trás, mas a partir de 1971 começa a sua ascensão, mesmo de vinda, como todos os processos, já desde antes. E aí se produz a marginalização, a exclusão, o cancelamento de dezenas ou centenas de artistas, professores, estudantes, porque era esse momento de criação do homem novo, do artista socialista e todos os pecados podiam ser possíveis e condenáveis. Podiam ser pecados de caráter ideológico, opiniões políticas, crenças religiosas, por exemplo, ou até mesmo por tendências sexuais. A homossexualidade também era condenada. E, bom, foram dez anos de aplicação dessa política por personagens como este abominável Reynaldo Quevedo.
Que é uma personagem de ficção, mas as vítimas de que fala, algumas são verdadeiras.
Algumas são verdadeiras, outras são de ficção. A personagem que desencadeia um pouco a tragédia é uma poetisa que se chama Natalia Poblet, é uma personagem de ficção. Mas vou citar apenas dois nomes para que tenha uma ideia de como foi a dimensão deste processo. Vivem e morrem no ostracismo, nessa década de 1970, dois dos maiores escritores cubanos de todos os tempos: José Lezama Lima, o autor de uma novela que se chama Paraíso; e Virgílio Piñera, o criador do teatro moderno cubano. E digo que foram centenas de pessoas que sofreram essa política nesses anos, aplicada por homens como o abominável Reynaldo Quevedo.
Descreve Reynaldo Quevedo como um poeta medíocre, porque também era um homem de letras que fazia a censura.
É que um desses censores reais, por acaso, também era poeta. São questões que a ironia não descreve, acho que é mais cinismo esse homem dizer que era poeta.
Quem lê esta novela e conhece a história de Cuba, sabe que é uma superpotência literária, e no cinema, na música, no bailado. Muitas pessoas associam-no a uma aposta da revolução. É algo que já existia no país ainda antes do triunfo da revolução, em 1959, esta pujança cultural?
Cuba criou uma cultura artística e literária que é muito maior do que a geografia da ilha. Desde o século XIX, Cuba torna-se culturalmente uma nação independente, porque não teve independência política até 1902, mas já existia uma cultura independente cubana própria. No final do século XIX, em língua espanhola, produz-se um movimento poético muito importante, que é o modernismo. E dos três grandes poetas modernistas, um é Rubén Darío, nicaraguense, e os outros dois são José Martí e Julián del Casal, ambos cubanos. Dos três grandes poetas que revolucionam a poesia da língua espanhola, dois são cubanos. Antes, o poeta romântico mais importante da língua espanhola foi José María de Heredia, o cubano, que é o protagonista da minha novela O Romance da Minha Vida. Já a música cubana se começava a estender por todas as Caraíbas e começa também a haver elementos de uma cultura não somente artística e literária em que Cuba se torna referência, mas de cultura em geral como é, por exemplo, a prática do desporto. O basebol chega dos Estados Unidos a Cuba e, de Cuba, é que chega ao México, Venezuela, República Dominicana, Porto Rico. Ou seja, o basebol chega a esses países das Caraíbas através de Cuba. Em Cuba torna-se o deporto nacional cubano. Ao longo do século XX, há uma quantidade importante de artistas cubanos, nomes como Alejo Carpentier ou Nicolás Guillén puderam ser representativos; na dança, Alicia Alonso. A música cubana é uma das que marca a história do século XX desde o princípio. Há um precursor cubano, negro, quase analfabeto, Chano Pozo, nascido num lugar marginal de Havana, que vai para Nova Iorque e introduz a percussão cubana no jazz. Cria com Dizzy Gillespie e Charlie Parker o bebop. Sempre houve uma grande cultura cubana. E antes que o mundo fosse um pouco diferente como é agora, lembre-se que os campeões mundiais de xadrez eram somente judeus russos. Bom, mas há um cubano, José Raúl Capablanca, nos Anos 30. 
A pujança cultural que dura até hoje não é, portanto, automaticamente produto da revolução?
A revolução potencia essa possibilidade. Por exemplo, cria-se a Imprensa Nacional de Cuba, que começa a publicar livros de forma passiva. A primeira edição que faz a imprensa, nos Anos 1960, é Dom Quixote de la Mancha, uma edição de 250 mil exemplares para um país de sete milhões de habitantes. Um Quixote por família. Houve uma campanha de alfabetização, porque hoje, que um país tenha 40% de analfabetismo, parece uma loucura. Nos Anos 1950 era quase normal. Houve uma campanha de alfabetização, criaram-se as Escolas de Arte, o Instituto de Cinema. Houve uma série de instituições que permitiram o desenvolvimento dessa cultura e essa cultura desenvolveu-se. Depois, nos Anos 70, contudo, uma má aplicação de uma política cultural frustra e determina a produção cultural e a vida de muitos artistas.
Quando falamos de Alberto Yarini, que é uma figura histórica que existiu , recordo-me do seu livro e vejo a Havana dos bordéis, da prostituição, que muitas vezes é a narrativa da Havana dos Anos 1950, antes da Revolução liderada por Fidel Castro. Esta Cuba que tinha saído da independência, era uma Cuba, apesar de tudo democrática, mas já muito corrompida?
Sim, isso vê-se no espaço histórico em que decorre este romance dentro do romance, em 1909/ 1910, poucos anos depois da independência, que um proxeneta, um homem que publicamente vive da prostituição, chega a ser o homem mais popular da cidade e que tenha o maior enterro que houve.
Mas que é um aristocrata e com ambições políticas.
Sim, vinha de uma família aristocrática, tinha ambições políticas, e é um facto histórico demonstrado que no seu velório esteve até o presidente da República. E altas personagens da política e da História cubana foram ao seu enterro, estiveram presentes e prestaram homenagem ao jovem que havia morrido. Porque a corrupção é um fenómeno que - e isso vê-se muito claramente - corresponde a uma das piores heranças que nos deixou a Administração Colonial Espanhola. A Administração Colonial Espanhola era uma administração corrompida. Usei uma documentação no livro O Romance da Minha Vida em que há um dos representantes cubanos nas cortes de Espanha que diz a uma das famílias cubanas que tinha mais poder económico: "Lembrem-se que têm dinheiro suficiente para comprar o governador da ilha que tenham de comprar." Ou seja, a burguesia cubana comprava até os governadores espanhóis da ilha. Então, é uma prática que se manteve e foi uma das razões que provocou a revolução de Fidel Castro.
Esta Havana descrita em 1909 e 1910, quando triunfa Fidel Castro, em 1959, ainda existe?
Sim, existe. Inclusive com uma componente que o faz mais evidente e que está a trabalhar, a investir e programar o desenvolvimento de Havana, que é a máfia norte-americana. Meyer Lansky vive em Havana e é o homem que tem toda a visão do que se chamaria as 100 milhas de ouro entre um porto, que é o porto do Mariel, que está a oeste de Havana, e a Praia de Varadero, que está a leste de Havana. 100 milhas iam ser as 100 milhas de ouro de casinos, hotéis, urbanizações, campos de golfe. E tudo isso, depois, todas esses investimentos vão para Las Vegas e outros terminam em Miami. Mas era Cuba o destino, precisamente porque havia a possibilidade de um país com condições geográficas e culturais muito favoráveis e com um Governo com políticas muito permissivas para poder fazer qualquer tipo de negócio.
Outro tema que se nota neste livro, nos dois momentos históricos, é a relação complicada com os Estados Unidos, tanto em 1898 quando vêm ajudar na guerra da independência, que os cubanos já estavam a conquistar por si sós, como depois na histórica visita de Obama. O nacionalismo cubano existe muito em função desta relação com os Estados Unidos?
Sim. Com respeito aos Estados Unidos, as suas relações históricas com Cuba são traumáticas. Intervieram na guerra de independência, mas depois o Exército americano manteve-se em Cuba por quatro anos e houve ainda segunda intervenção militar, em 1906. Depois triunfa a Revolução, há o episódio da Baía dos Porcos, o embargo ou bloqueio, toda uma série de elementos até hoje.
E há o caso de Guantánamo, que se mantém base americana.
A Base de Guantánamo, que vem dessa época e já sabemos qual foi o destino desse lugar, que já não tem nenhum valor estratégico para os Estados Unidos e é uma prisão para terroristas estrangeiros. Estas relações traumáticas acontecem no campo da política. Mas no campo de outras relações entre Cuba e os Estados Unidos, há uma enorme proximidade. Em Cuba dizemos que o nosso destino é que estamos muito longe de Deus e muito perto dos Estados Unidos. E sei que os mexicanos também o dizem. O outro país do mundo onde há mais paixão pelo basebol é Cuba. A música cubana e a música norte-americana são músicas que se influenciaram historicamente. Para que tenha uma ideia do quão importante era Cuba para os Estados Unidos, não o contrário, no ano de 1954, o país mais famoso do mundo nos Estados Unidos, era Cuba. Porque o livro que levou Hemingway ao Nobel, que ganha nesse ano, é O Velho e o Mar, uma história cubana. O ritmo que se dança nos Estados Unidos é o mambo cubano. Todos os Estados Unidos estavam a dançar o mambo. E terceiro, a primeira série de televisão que se torna um sucesso chama-se I Love Lucy e o protagonista é um cubano chamado Desi Arnaz. E ele falava como cubano. Ele falava inglês, mas falava como cubano e sabia-se que era cubano. Então, é uma relação em que do lado da parte política, existe essa tensão e às vezes esse ressentimento, mas pela parte cultural, afetiva e admirativa - ainda hoje, se perguntar a alguém de uma geração anterior à minha, as suas referências no cinema são Liz Taylor e Richard Burton, porque se educaram nessa cultura. É um trauma complicado, como todos os traumas, e já teve os seus lados positivos e os seus lados negativos.
A visita de Obama a Cuba foi em 2016. Estava lá quando ele lá foi? Houve uma expectativa que fosse um momento histórico de viragem nas relações políticas ou era muito a personalidade de Obama a atrair a curiosidade?
Sim, estava. Foi um momento histórico, sem dúvida. Um presidente dos Estados Unidos, diz-se isso em algum momento na novela, não vai todos os dias a Cuba, nem sequer todos os séculos. E com a situação que existia de tensão entre Estados Unidos e Cuba durante 60 anos, era muito mais importante, muito mais histórico. E acho que é uma das coisas que tento descrever no romance. Cria-se um sentimento de esperança de que as coisas podem mudar, e as coisas para mudar em Cuba, necessariamente, têm de passar por uma relação melhor com os Estados Unidos. Não acho que Obama tivesse a intenção de apoiar o Governo cubano, tinha sim a intenção de destabilizar o Governo cubano, mas com a inteligência de fazê-lo com políticas diferentes das que se tinha aplicado até àquele momento. Então, sente-se na sociedade cubana, nesses anos, uma atmosfera diferente. Há dinheiro, as pessoas viajam, fazem pequenos negócios, os donos dos automóveis cortam o teto para passear turistas nos velhos automóveis norte-americanos dos Anos 1950. Em janeiro de 2017, pediram-me uma colaboração com o New York Times, que escrevesse em não sei quantas palavras - essas coisas terríveis que a imprensa tem agora em que dizem exatamente quantos carateres se pode publicar, mesmo que se diga que requer dez vezes mais espaço. Mas o que eles queriam era a minha perspetiva sobre o que poderia vir a passar-se com Donald Trump como presidente. E o que eu faço é contar a história de um senhor que vendeu tudo o que tinha, comprou um velho automóvel norte-americano, reparou-o, colocou um motor novo e fez o corte do teto para passear turistas. E quando chega Trump ao poder, este homem pediu a Deus que Trump não desista do acordo, mas Trump desistiu do acordo e destruiu-lhe o negócio. Trump aplicou a mesma política que se havia aplicado antes. Com o caso de Trump, há uma precisão que é importante: acho que Trump não tinha uma intenção, ao princípio, específica com respeito a Cuba, mas tinha antes a intenção específica de desmontar todas as políticas de Obama. Tentou desmontar o Obamacare, por exemplo, que foi uma política importante para muitas pessoas nos Estados Unidos.
Cuba sofreu por Trump ser anti-Obama, mas mesmo com Biden não se voltou atrás.
Veio Trump, veio a pandemia, aumenta-se a ineficiência económica própria do sistema cubano. E Biden muda muito poucas coisas, mas, na essência, seguimos igual ao que tínhamos na época de Trump. Como sabe, muitos países da Região das Caraíbas e da América do Sul dependem dos envios de dinheiro que fazem os imigrantes que vivem nos Estados Unidos. Mesmo um país rico e grande como o México. Na época de Trump houve um momento em que era impossível enviar dinheiro para Cuba. Impossível. Pode imaginar como é que isso afetou a vida diária das pessoas em Cuba, muita gente vivia dessas remessas que recebia. E com Biden isso voltou a agilizar-se, voltou a ser possível, mas na essência a política não mudou.
Essa personagem que surge no final do romance, na história que envolve Mario Conde, o curiosamente chamado José José, define-o como um homem decente. O romance e a História de Cuba mostram que é possível ser uma pessoa decente, mesmo quando há miséria, pobreza, dificuldades ou mesmo perseguição política. Há pessoas que são capazes de manter a decência?
Acho que sim. A decência é uma qualidade moral. Lembro-me, quando era criança, que a minha família tinha certas possibilidades económicas que se perderam com os anos da revolução. Em 1958, a minha família era de classe média muito baixa, mas classe média. Tínhamos casa própria, automóvel, o meu pai tinha um pequeno negócio com o irmão. Esse negócio não foi tirado ao meu pai e ao meu tio pelo Governo, eles venderam porque havia tantos problemas entre eles que o meu pai me dizia que se continuasse a trabalhar com o irmão, o matava. Então preferiram vendê-lo. Vivíamos num bairro e ainda vivemos. Vivo na mesma casa onde nasci, no mesmo bairro onde a minha família viveu toda a vida, e lembro-me que se dizia que essas famílias, essas pessoas, eram pobres, mas decentes. E era um valor que essas pessoas tinham, mesmo com respeito à sua apreciação social. E acho que sempre foi possível, até mesmo em épocas críticas, em épocas de pobreza, ser uma pessoa decente. E neste romance, além disso, e talvez agora façamos uma espécie de curva para chegar ao final, há um setor de pessoas que são as mulheres que se prostituem, que são consideradas pela sociedade, tradicionalmente, como pessoas indecentes. Sem nos colocarmos a analisar por que é que uma mulher se prostitui, que muitas vezes o faz porque é a única forma de sobreviver. E num país onde 90% das mulheres eram analfabetas e onde apenas 5% tinha proteção, é muito injusto dizer que as putas são indecentes. Tem de ser compreensível. Então, esse valor, acho que sim, que é possível manter. E a minha personagem, Mario Conde, que é a outra pessoa decente importante desse romance, tem de ser, porque somente tendo uma estatura ética pode julgar os indecentes. É muito difícil que um indecente julgue outro, porque estão na mesma equipa. Então, Conde mantém sempre essa decência no meio de muitas carências. E é uma das coisas que o faz simpático aos olhos dos leitores.
A última pergunta tem a ver com o contraste com a decência. Esta ideia do "homem invisível", da pessoa que beneficia da abertura económica e das mudanças num regime oficialmente ainda comunista, mas se esconde. É uma nova forma de indecência?
Essa é uma das formas de indecência. Há uma pessoa que tem a possibilidade de montar um negócio privado e procura o que se chama um testa de ferro, o que dá o rosto como dono do negócio, mas o verdadeiro dono é outro. Isso praticou-se na Cuba desses anos e está a praticar-se mais agora, segundo tudo parece indicar. Não posso mencionar um só nome, porque não tenho uma só prova, mas com as novas pequenas empresas privadas que surgiram, as chamadas pequenas e médias empresas, pequenos negócios familiares e tal. Bom, essa estrutura aplicou-se em Cuba para negócios privados de diferentes tipos e há algumas que fazem suspeitar que são pessoas que têm possibilidades de aceder a informação e a diferentes possibilidades comerciais. Não posso especificar quais, porque não conheço os mecanismos com que funcionam, mas está a falar-se sobre isso em Cuba, que há alguns ou vários homens invisíveis atrás dessas pequenas e médias empresas.
E voltamos à ideia inicial da tradição de corrupção.
Sim, é corrupção. Porque, por exemplo, se este hotel é do Estado e o Estado não pode geri-lo mais e de repente entrega-o a alguém para que faça um hotel privado, nunca tendo existido uma licitação pública, isso é corrupção. Porque entrega-o por alguma razão. Ou porque pagou, ou porque é filho de, ou porque tem amigos. Enfim, são formas muito visíveis, muito diferentes, de corrupção, mas que existem.
Há muita gente que diz que Cuba é uma ditadura e que tem uma relação complicada com os opositores, que não há liberdade de expressão. Mas ao mesmo tempo, o regime, em relação a si, que é um escritor famoso, que tem uma escrita de grande qualidade, mas também uma escrita que é tão natural e tão realista que é crítica, aceita-o. É uma relação de compromisso? Ou seja, o regime aceita a sua liberdade de expressão porque todos ficam a ganhar com isso?
Acho que me aceitam como um mal inevitável. Repare, hoje fiz num só dia, aqui, três entrevistas. Em Cuba, com os meios cubanos, não faço três em um ano, nunca saio nos jornais, nunca saio na televisão, nunca saio na rádio. Os meus livros são pouco e mal publicados. Continuo a viver em Cuba porque preciso de Cuba para viver e para escrever. É lá que tenho a minha mãe, tenho a minha casa, tenho a minha língua, tenho as minhas personagens, tenho tudo em Cuba.
E o nacionalismo cubano também o faz continuar na ilha?
Sim, sim, porque pertenço a uma cultura. Não acho que exista inteligência suficiente para que exista uma montagem política, ou seja, que diga "vamos deixar que insista para demonstrar algo". Se eu saísse de Cuba, para eles seria ideal. A minha liberdade deve-se, sobretudo, a ter a possibilidade de ter, há quase 30 anos, a mesma editora em Espanha. Os meus livros saem do meu computador para o computador dos meus editores em Barcelona, não passam por nenhum filtro cubano. E eu, como cidadão, cumpro todas as leis, pago os impostos, pago tudo. Além disso, lembre-se de que a Al Capone não o puderam julgar como criminoso, por isso julgaram-no por fuga aos impostos. Foi algo que também fez com que decidisse ficar em Cuba, o poder fazer a minha vida normal como pessoa, mesmo que não tenha a promoção como escritor. Digo-lhe, saio mais nos jornais portugueses, na TV, na rádio, em eventos públicos do que em Cuba.
Mas este Pessoas Decentes também é um livro escrito por alguém que ama muito Cuba.
Sim. Aliás, tinha um amigo que morreu no exílio e que dizia que ninguém amava mais Cuba do que ele. Acho que também me incluiria nessa equipa dos que amam muito Cuba.”
Leonídio Paulo Ferreira, em artigo publicado no DN de 30 de Outubro de 2023

segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Pesadelos para ficar

Que pensam, de nós, crianças, cães, gatos,
quando chovem, sobre eles, infernos,
numa Palestina de insensatos,
que tudo muda em escuros invernos?
 
Podem as crianças compreender
que seres humanos rebentem casas,
ponham o mundo todo a arder
e, a todos, eles cortem as asas?
 
Crianças e animais aterrados,
para sempre mutilados e mudos,
porque, subitamente atirados
 
para o meio da luta, como escudos!
Um horror que irá sempre visitar
os pesadelos dos que vão sobrar!
                             30.10.2023
Eugénio Lisboa

Le Rouge et Le Noir

Se eu pudesse explicar o que as coisas significam
não teria necessidade de dançá-las.
             Isadora Duncan

  

LE ROUGE ET LE NOIR, (extrait), por  Pierre Lacotte, com Dorothée Gilbert & Hugo Marchand,(Les Étoiles, les Premiers Danseurs e le Corps de Ballet de l’Opéra Orchestre de l’Opéra national de Paris).
"Na década de 1830, na época da Restauração, Julien Sorel, um jovem irresistível de 18 anos, viveu uma ascensão meteórica. Protegido pelo Abade Chélan,  entra no mundo da aristocracia no centro das lutas pelo poder. O Vermelho e o Preto é a história de uma vida tumultuada, onde o amor se mostra a mais perigosa das paixões. Madame de Rênal e Mathilde de La Mole são duas das personagens que se ligam ao herói .
Em sumptuosos cenários e figurinos que ele próprio imaginou, Pierre Lacotte, a quem devemos a reconstrução de La Sylphide, Paquita e Coppélia, oferece uma criação inteiramente nova baseada no romance de Stendhal, acompanhada pela música de Jules Massenet."

O aprendiz de feiticeiro

Joseph de Maistre

O aprendiz de feiticeiro
De como um pensamento reacionário do século XIX se tornou um aviso sensato no século XXI
por Eugénio Lisboa
“Joseph de Maistre foi um filósofo, crítico e pensador político dos séculos XVIII / XIX, opositor impiedoso do iluminismo e, mesmo, reacionário ultramontano e pai espiritual de Charles Maurras. Excelente prosador, contudo, teve, como tal, a aprovação de poetas como Lamartine e Baudelaire. É dele este pensamento, de 1800, que traduzo:” Se não voltamos às máximas antigas, se a educação não é reentregue aos padres e se a ciência não é posta, por todo o lado, em segundo lugar, os males que nos esperam são incalculáveis: seremos embrutecidos pela ciência e será o último grau do embrutecimento.” Pondo de lado a reentrega da educação aos padres – lagarto! lagarto! – há, no pensamento deste impenitente reacionário, matéria que merece atenção. É evidente que não poderemos atribuir à ciência só alguns males sérios que estamos a fazer à humanidade e à vida no planeta, em geral, e esquecermos os incalculáveis benefícios que ela trouxe ao nosso viver material e espiritual. Nos transportes, nas comunicações, na vida doméstica, no campo essencial da medicina, no armazenamento e rápida transmissão do conhecimento, nos novos instrumentos e condimentos que trouxe às artes, a ciência prestou um indiscutível melhor estar aos humanos. Mas não houve, hélas!, um necessário e cauteloso equilíbrio entre essas vantagens inegáveis e a depredação que, com elas, andámos a fazer ao ambiente, além do mal que andamos também a fazer às mentes das novas gerações, com o uso embrutecedor de certas vantagens tecnológicas. O uso indiscriminado e pouco pensado do telemóvel e do computador, para dar um só exemplo, está a produzir intermináveis fornadas de imbecis e ignorantes, totalmente convencidos e satisfeitos consigo próprios e com o seu próprio saber, “porque está tudo na internet”. Pois está: antigamente também estava tudo nas enciclopédias, mas não estava na cabeça deles, como agora também não está. Esta horrível desfasagem entre o crescimento assombroso da ciência e a nossa estagnação em termos de sabedoria de viver, foi e tem sido diagnosticada, com alarme, por figuras como Einstein e até por pais fundadores da ciência informática. Estamos, como o aprendiz de feiticeiro, a brincar com um invento de que não sabemos muito bem as consequências que nos vai trazer. Ou sabemos e fechamos os olhos para não ver e a cabeça para não antever. No entanto, o feio e crescente embrutecimento está à vista: basta uma visita breve às malcheirosas redes sociais. Nunca tantos disseram tantos dislates em tão pouco tempo e com tal velocidade de transmissão.”
Eugénio Lisboa, 29.10.2023 

domingo, 29 de outubro de 2023

Oblívio

O esquecimento é o que nos espera.
Haverá mal em sermos esquecidos?
Termos sido, alguma coisa altera
a tantos destinos não cumpridos?
 
Há tantos que ficaram por lembrar!
Tantos que não chegaram a cumprir-se!
Não há futuro que dê para guardar
a memória, mesmo de grão-vizir.
 
O esquecido não sabe que é esquecido,
não lhe doendo, pois, o esquecimento:
tanto lhe faz ter ou não ter nascido,
 
porque o não ser não causa tormento.
Esquecer é apagar definitivamente
o que na vida houve de indigente.
                           29.10.2023
Eugénio Lisboa

Thriller!!

 

À memória de William Irish
Um thriller dos bons e bem construído,
de criar um suspense do caraças,
sabe muito bem, num dia franzido
em que o negro “gloom” nos faz negaças.
 
O suspense parece que faz mal,
mas, ao contrário, até nos faz bem:
dá-nos adrenalina adicional,
com isto de quem anda a matar quem!
 
Aquilo que está para acontecer
sabe tão bem como pão com chouriço,
em piquenique, mesmo a chover!
 
Ficarmos no meio de um enguiço
dá um sabor muito melhor à vida,
porque é inquietação consentida!
27.10.2023
Eugénio Lisboa
 
Dou-vos este soneto porque o dia está fosco. Recomendo-vos, portanto, não a leitura da CRÍTICA DA RAZÃO PURA, mas, antes, um bom romance ou novela ou conto desse admirável Edgar Poe do século XX que se chamava Cornell Woolrich, mas escrevia também sob o nome de William Irish. Estes homens, que sabem “meter medo” e criar ansiedade, são verdadeiros benfeitores da humanidade
.

Rimas heptassilábicas com guerra

 
Se guerra rima com ferra,
não rima menos com berra
e até rima com enterra!
E por que não com desterra?
Por outro lado, aterra
e sempre, mas sempre, erra.
Salve-se o antiguerra,
mas é triste o após-guerra,
porque é feio o que encerra!
                    28.10.2023
Eugénio Lisboa

Ao Domingo Há Música

 

Bem-aventurados
os misericordiosos,
pois obterão misericórdia.
  Mateus 5:7

porque será exercido juízo sem misericórdia sobre quem não foi misericordioso. A misericórdia triunfa sobre o juízo!
  Tiago 2:13

A selecção musical deste domingo vem a par do curso dos dias que nos tem retido em perplexo temor e compaixão.  
Retomámos um belíssimo concerto no Forum Romano,  introduzido por uma cantora  que nele participou.
"Há quatro anos, o Papa Francisco escolheu a minha ‘Ave Maria’ para ser a canção do seu Jubileu ‘Ano da Misericórdia’. Em 2016, numa noite quente de verão romano, eu e os grandes nomes  da música, Andrea Bocelli, David Foster, Elaine Paige, The Tenors e Giovanni Caccamo realizámos um concerto único no histórico, atmosférico e antigo Forum Romano. Sob a batuta do Maestro Gianluca Marciano, enchemos as ruas de Roma com o som de uma música gloriosa celebrando a sagrada mensagem de “Misericórdia” do Santo Padre.
Pela primeira vez, assista a este evento icónico no conforto da sua casa. Espero que possa trazer um pouco de amor, fé e luz durante este momento difícil."
Carly Paoli, 10/04/2020

Andrea Bocelli, David Foster, Elaine Paige, Carly Paoli,  em  Music For Mercy , espectáculo no Forum Romano, Roma. 
 

sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Frase do dia

 

Frase do dia, proposta por Eugénio Lisboa

Se é preciso na paz preparar a guerra, como diz a sabedoria das nações, indispensável também se torna na guerra preparar a paz.
         Romain Rolland

URGENTE

 

URGENTE
 
É urgente destruir certas palavras,
 ódio, solidão e crueldade
 alguns lamentos, muitas espadas.
            Eugénio de Andrade
 
 
O ódio, a solidão, as espadas
e a crueldade são as locuções,
por ti, grande poeta, detestadas,
quando versejas tuas petições.
 
Pedes urgência para o amor,
pede-la também para a alegria
e pra rosas e rios, com fervor,
porque nada disto tudo se adia!
 
Teus versos emitem a luz do dia,
que tão bem ilumina a tua urgência:
eles dizem, com ardor e eufonia
 
e com uma original cadência,
o desejo que, em ti, reside, puro,
de amor e alegria, no futuro.
                      26.10.2023
Eugénio Lisboa

quinta-feira, 26 de outubro de 2023

Um mundo de homens

 
O muçulmano Muhammed Attah,
que destruiu uma das torres gémeas,
atirando pessoas para a sucata,
com menção especial para as fêmeas,
 
legou-nos dois únicos testamentos:
um não queria, no seu funeral,
a presença de seres nojentos:
mulher ou animal, só num curral.
 
O outro não queria, perto de casa,
os seres mais impuros que existem:
fêmeas prenhas, cuja impureza arrasa.
 
Estes homens são seres que insistem
no valor único do masculino,
que despreza o odor do feminino.
                         26.10.2023
Eugénio Lisboa

quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Glosa sobre o fanatismo


O fanatismo embrutece
ou a estupidez fanatiza?
A burrice não me enternece
e o fanático barbariza.
 
O fanático tem certezas,
onde certezas não existem:
estão repletas de bichezas
que são nocivas e persistem.
 
A fé não é conhecimento,
pelo menos, até mais ver.
Transforma o mundo em turbulento
e estupora o bom viver.
 
Crê quem desiste de entender,
por isso o crente é perigoso:
quando não sabe convencer,
vira tirano afanoso.
 
O fanático não tolera
aquilo que não compreende:
torna-se logo uma fera,
filha bastarda de duende!
               25.10.2023
Eugénio Lisboa
 
Dou isto à meditação dos actuais “iluministas”, totalmente embevecidos com os fanáticos que por aí proclamam, aos gritos, um óbvio desejo de hegemonização religiosa do planeta, para maior glória de um deus soturno e nada misericordioso, que veneram. Eles nem sequer escondem ao que vêm. E os “iluministas” acolhem-nos de braços abertos, decididos a serem, por eles, devorados. Já se tem visto e a História, afinal, repete-se.
O fanatismo e a ignorância militante são os maiores inimigos actuais deste pobre planeta. E o bem intencionismo enviesado dos “iluministas” dá à catástrofe uma boa ajuda. 

The Small Measure of Peace

      To be at a certain place or with a certain person for the rest of your days
 and to be at ease with your decision, that contentedness is to have found
 the 'small measure of peace' ,that we can spend our entire lives trying
 to capture but only a few ever truly find. 
 
Hans Zimmer - Small measure of Peace

Chamaram-me Sontinho

Lourenço Marques


José Craveirinha - Depoimento autobiográfico
(Janeiro de 1977)
 
"Nasci a primeira vez em 28 de Maio de 1922. Isto num domingo. Chamaram-me Sontinho, diminutivo de Sonto [que significa domingo em ronga, língua da capital]. Pela parte de minha mãe, claro. Por parte do meu pai fiquei José. Aonde? Na Av. do Zichacha entre o Alto Maé e como quem vai para o Xipamanine. Bairros de quem? Bairros de pobres.
Nasci a segunda vez quando me fizeram descobrir que era mulato...
A seguir fui nascendo à medida das circunstâncias impostas pelos outros.
Quando meu pai foi de vez, tive outro pai: o seu irmão.
E a partir de cada nascimento eu tinha a felicidade de ver um problema a menos e um dilema a mais. Por isso, muito cedo, a terra natal em termos de Pátria e de opção. Quando a minha mãe foi de vez, outra mãe: Moçambique.
A opção por causa do meu pai branco e da minha mãe negra.
Nasci ainda mais uma vez no jornal O Brado Africano. No mesmo em que também nasceram Rui de Noronha e Noémia de Sousa.
Muito desporto marcou-me o corpo e o espírito. Esforço, competição, vitória e derrota, sacrifício até à exaustão. Temperado por tudo isso.
Talvez por causa do meu pai, mais agnóstico do que ateu. Talvez por causa do meu pai, encontrando no Amor a sublimação de tudo. Mesmo da Pátria. Ou antes: principalmente da Pátria. Por causa de minha mãe, só resignação.
Uma luta incessante comigo próprio. Autodidata.
Minha grande aventura: ser pai. Depois, eu casado. Mas casado quando quis. E como quis.
Escrever poemas, o meu refúgio, o meu País também. Uma necessidade angustiosa e urgente de ser cidadão desse País, muitas vezes altas horas da noite."
José Craveirinhain Antologia da nova poesia moçambicana, org. Fátima Mendonça e Nelson Saúte, AEMO, 1989, pp. VIII-X. 


Xigubo
 
Minha mãe África
meu irmão Zambeze
Culucumba! Culucumba!
Xigubo estremece terra do mato
e negros fundem-se ao sopro da xipalapala
e negrinhos de peitos nus na sua cadência
levantam os braços para o lume da irmã lua
e dançam as danças do tempo da guerra
das velhas tribos da margem do rio.
Ao tantã do tambor
o leopardo traiçoeiro fugiu.
E na noite de assombrações
brilham alucinados de vermelho
os olhos dos homens e brilha ainda
mais o fio azul do aço das catanas.
Dum-dum!
Tantã!
[...]
E as vozes rasgam o silêncio da terra
enquanto os pés batem
enquanto os tambores batem
e enquanto a planície vibra os ecos milenários
aqui outra vez os homens desta terra
dançam as danças do tempo da guerra
das velhas tribos juntas na margem do rio.
José Craveirinha , in Obra Poética I, Edit. Caminho, 1999, p 132

E grito Inhamússua, Mutamba, Massangulo !!!
E torno a gritar Inhamússua, Mutamba, Massangulo !!!
E outros nomes da minha terra
afluem doces e altivos na memória filial
e na exacta pronúncia desnudo-lhes a beleza.
Chulamáti ! Manhoca ! Chinhambanine !
Morrumbala, Namaponda e Namarroi
e o vento a agitar sensualmente as folhas dos canhoeiros
eu grito Angoche, Marrupa, Michafutene e Zóbuè
e apanho as sementes do cutlho e a raiz da txumbula
e mergulho as mãos na terra fresca de Zitundo

José Craveirinha,in Obra Poética I, Edit. Caminho, 1999 , p 100

José Craveirinha

Vida e obra de José Craveirinha
 
"Poeta, ensaísta e jornalista. Nasceu em Lourenço Marques (hoje Maputo), filho de pai branco (algarvio) e de mãe negra (ronga). Sendo o pai um modesto funcionário e, ao tempo da opção, já reformado, José Craveirinha teve de ser sacrificado, ficando pela instrução primária, para que seu irmão mais velho fizesse o liceu. Mas Craveirinha, que então já lia muito, influenciado por seu pai, grande apaixonado de Zola, Victor Hugo e Junqueiro, passa a fazer em casa o curso que o irmão fazia no liceu, acompanhando as lições que este ia tendo. Assim, os seus professores foram-no sem o saber ou sabendo-o só mais tarde. Iniciou a sua actividade jornalística no Brado Africano, mas veio a colaborar depois no Notícias, onde foi também revisor, na Tribuna, no Notícias da Beira, na Voz de Moçambique e no Cooperador de Moçambique. Neste último publicou uma série de artigos ensaísticos sobre folclore moçambicano que constituem uma importante contribuição para o tema. Mas foi na poesia que Craveirinha se revelou como um destacado caso nas letras de língua portuguesa, afirmando-se "a incomensurável distância - o maior poeta africano de expressão portuguesa" (Rui Knopfli). Estrear-se-ia como poeta, também no Brado Africano de Lourenço Marques, em 1955, seguindo-se a publicação de poemas seus no Itinerário da mesma cidade e em jornais e revistas de Angola, Portugal (nomeadamente em Mensagem, da Casa dos Estudantes do Império) e Brasil, principalmente. Figura em todas as antologias de poesia africana de língua portuguesa que desde então se publicaram e também em muitas antologias de poesia africana de todas as línguas. A sua estreia em livro deu-se com Chigubo, editado em Lisboa em 1964 pela Casa dos Estudantes do Império e logo apreendido pela PIDE, que o utilizou como prova nos processos de que foi vítima durante o período em que esteve preso (na célebre cela 1 com Malangatana e Rui Nogar, entre outros, entre 1965 e 1969). Antes, em 1962, uma colectânea de poemas seus com o título de Manifesto obtivera o Prémio Alexandre Dáskalos da Casa dos Estudantes do Império. Obteria depois numerosos prémios em Moçambique, Itália (o Prémio Nacional de Poesia e outros) e Brasil, além do Prémio Lotus da Associação de Escritores Afro-Asiáticos, de cujo júri passou depois a fazer parte. Foi o Prémio Camões de 1991. Está traduzido em várias línguas e é grande a relação de estudos que à sua poesia foram dedicados. Usou também os nomes: Nuno Pessoa, Mário Vieira, J. C., J. Cravo e José Cravo."
Adaptado de Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. V, Lisboa, 1998.

terça-feira, 24 de outubro de 2023

O que se esconde por detrás do Hamas, do Hezbollah, do Irão et altri

Período do Terror de 1793, em França - ( Revolução Francesa 1789)
 
O que se esconde por detrás do Hamas, do Hezbollah, do Irão et altri
por Eugénio Lisboa
 
From the beginning men used God
to justify the unjustifiable.
Salman Rushdie

Religious fanaticism is the most
dangerous form of insanity.
Robert Graves
 
“Começo, para não haver dúvidas sobre aquilo a que venho, por dizer que condeno com a maior veemência, o comportamento arrogante, brutal e invasivo que Israel tem demonstrado, ao longo dos anos, para com os palestinianos da faixa de Gaza. Mesmo tendo em conta que Israel passou por períodos altamente perigosos, no começo da sua formação, quando foi atacado por todos ou quase todos os Estados árabes da redondeza, o que lhe terá criado um complexo de “excesso de resposta”, este excesso tem ultrapassado todas as linhas vermelhas de uma desejada proporcionalidade. Todavia, também honestamente não devemos esquecer que o HAMAS jamais aceitará a solução dos dois Estados, convivendo pacificamente. Para estes, como fundamentalistas de um Islão inaceitável por gente civilizada, a Palestina é terra islâmica, doada aos palestinianos por Alá e nenhum “infiel” poderá jamais habitá-la. Por outras palavras, os israelitas devem ser escorraçados daquele sagrado solo islâmico. E o HAMAS não é uma excrescência bizarra, no solo palestiniano. É lá aceite e faz parte dos que ali governam: foi eleito. Por outras e bem dolorosas palavras, se os palestinianos merecem toda a solidariedade pelo que têm sofrido e continuam a sofrer, a última coisa que podem dizer é que são vítimas inocentes, porque não são. Quem semeia ventos colhe tempestades. Eles conhecem a fibra de Israel, mas permitem que o HAMAS continue com a sua política de quanto pior, melhor. O HAMAS, aquecido fanático religioso, usa de uma linguagem e de um comportamento de profeta medieval. Não é com guerras sagradas que se resolve, no século XXI, um complexo problema de convivência. Dizia o nunca assaz citado Diderot, um dos pais da Revolução Francesa, que “do fanatismo à barbárie, vai apenas um passo.” O HAMAS já deu esse passo. Aliás, a própria França passou por isso, quando caminhou da Revolução de 1789 para o Terror de 1793. O fanatismo só pode levar à destruição e faz pena ver uma certa esquerda a pôr-se embevecidamente ao lado de fanáticos religiosos, que os devorarão, assim que tiverem oportunidade. Por detrás destes está um país infernal, tirânico, retrógrado e misógino, que a esquerda – uma certa – não gosta de atacar, porque financia os delírios revolucionários de grupelhos mais ou menos genocidas. Dizia o grande Umberto Eco que “as pessoas nunca são tão completamente e entusiasticamente más, como quando agem em nome das suas convicções religiosas.” Ficam aqui estes avisos destinados àqueles que se referem sempre à triste tragédia do povo palestiniano, esquecendo-se de mencionar o HAMAS, como um dos encenadores dessa tragédia. Com Israel, sim. Juntos."
Eugénio Lisboa, 24.10.2023
 
NOTA FINAL: Ser de esquerda não é o mesmo que apoiar fanáticos. O grande homem de esquerda que foi Voltaire escreveu uma peça de teatro intitulada MAOMÉ, cuja leitura recomendo aos “compagnons de route” do HAMAS. Não vai ser fácil encontrar uma edição desta obra. Eu possuo-a numa edição das obras de Voltaire, publicadas ainda em vida do grande escritor.

segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Não é com palavras de ódio que se constrói a paz

 
Não é com palavras de ódio que se constrói a paz
por Eugénio Lisboa
 
 
Uma coisa não é necessariamente
verdadeira, só porque morremos por ela.
Oscar Wilde
 
 
“Não há mortos bons e mortos maus. Os mortos são todos iguais e não há uns mais iguais do que os outros. Morrer por uma causa que se julga boa é, como observou Bertrand Russell, uma estupidez, porque podemos estar errados e a causa não ser boa. Só os idiotas e os fanáticos têm certezas. Os filósofos e os homens de ciência costumam ter dúvidas. Quase todos os mortos têm alguém que gostaria de os retrazer à vida. Não se pode chorar um palestiniano morto e não se chorar um israelita morto. Um autor anónimo disse esta coisa belíssima: “Se as lágrimas pudessem construir uma escada e as memórias uma estrada, eu subiria ao céu para te trazer de volta.” Há por certo, pelo menos, um palestino que pensa isto de outro palestino morto e um israelita que pensa isto de outro israelita morto. Diante destes mortos, de um lado e do outro, devemos curvar-nos, em respeito, e não tomar partido. Não dá para se gostar de uns e não se gostar de outros. E também não deve dar para incitar palavras de ódio e não palavras de paz. Não há “infiéis”, há só pessoas que têm visões da vida diferentes. Devemos respeito aos mortos, mas não àqueles que os fizeram morrer, porque estes não souberam encontrar, nem de um lado nem do outro, a linguagem do diálogo e da paz. Nenhum deles tem a razão toda, embora ambos tenham as suas razões. Tentar chegar a uma solução aceitável, por via da guerra é o mesmo que tentar preservar a vida por via da morte. A guerra, como dizia o outro, não dita quem tem razão, dita só quem sobra. E os que sobram encontram-se, regra geral, piores do que estavam, antes de a guerra começar.
As redes sociais andam cheias de uma gritaria frenética, uns a favor dos palestinos (ocultando cuidadosamente as atrocidades do HAMAS), outros a favor dos israelitas (ocultando a opressão ignóbil destes sobre os palestinos e os colonatos impostos, em violação das leis internacionais). Quem não é nem palestino nem israelita devia favorecer a linguagem da aproximação, do diálogo e da paz, em vez de incitar ao ódio, que os leva, quase sem darem por isso, a pisar um chão ensanguentado. Cogito muitas vezes como podem dormir sossegados os fautores de guerras e os imbecis que os seguem, sem um minuto de reflexão. Sabe-se hoje, por força da documentação histórica existente, que a horrível carnificina da Primeira Guerra Mundial poderia ter sido evitada. A Europa poderia estar hoje mais forte e mais feliz. E o nosso património cultural infinitamente mais rico, se alguns dos talentos e génios ali mortos e apodrecidos, tivessem vivido as suas vidas normais.
Toda a guerra é sempre um mal e uma fonte insensata de desperdício. Quem a faz, quem a aplaude e quem a incita comete um inequívoco acto de delinquência, punível ao mais alto nível.”
Eugénio Lisboa, 23.10.2023

Até o lume parece encantado

 
Até o lume parece encantado
por Raul Brandão
“Nas  caladas noites de Inverno, quando despego o olhar dos papéis, encontro sempre os teus que me envolvem de ternura . Isto é quase nada  - e revolve o mundo. É saudade , e a vida que passa e a morte que se aproxima, enquanto o tronco arde  no lume , o pinheiro estala ou o carvalho amorroa. De fora, vem o hálito da floresta e das águas. Mais silêncio… Surpreendo-me então a repetir o meu pensamento, ou é o teu que me acode ao mesmo tempo. Não fales!  Outra figura transparece atrás da tua figura. Nesse momento  até o lume parece encantado e ficas tão linda que antevejo a vida misteriosa que me fascina e deslumbra.  Isto só dura um segundo. Mas basta  às vezes que sorrias e é a tua alma que sorri, basta ás vezes que não fales e é a tua alma que me fala! Nesse momento somos um ser: eu sou tu , tu és eu, tu sorris, eu sorrio… Então cai sobre nós o silêncio  - e eu descubro o que só nos é dado ver depois da morte, a amplidão das almas, seu poder mágico e, num deslumbramento, ao lado da existência pueril, a imensidade do universo e o infinito que nos rodeia e de que perdemos a sensação pelo hábito. A casa que tem raízes de granito, voga no éter arrastada num turbilhão que me mete medo… Alguém nos vai bater à porta … Alguém se aproxima pouco  e pouco num cerco que se aperta e em passos tão leves que mal se ouvem … Rodeia -nos o silêncio vivo,  alma do mundo, o silêncio que é talvez o que mais amo na aldeia, este silêncio perfumado que envolve a nossa casa na solidão tremenda da noite: mais perto de mim arfa alguma coisa de religioso e profundo: - sinto a Vida e a Morte. Sinto—as enquanto a última brasa se apaga e as tuas mãos se agarram às minhas mãos de velho. “
Raul Brandão, in Se tivesse de recomeçar a vida, Livraria Civilização Editora, Porto pp.42, 43
Raul Brandão
Sobre o Autor:
Raul Brandão (1867-1930) nasceu na Foz do Douro e aí passou a infância e a juventude. "Era filho e neto de pescadores. Durante os anos de liceu, começou a interessar-se pela literatura. Frequentou, como ouvinte, o Curso Superior de Letras, ingressando mais tarde na Escola do Exército. Paralelamente a esta carreira - mormente ligada à burocracia militar - Raul Brandão foi jornalista escritor. Em 1896 foi colocado em Guimarães, cidade onde se casou e se instalou definitivamente. Em 1912, depois de se reformar, dedicou-se exclusivamente à escrita, encetando um ciclo de particular fecundidade literária. É o grande modernista português na prosa de ficção. "Húmus", 1917, é considerada a sua melhor obra , aquela que mais legitimamente o situa no plano das obras excepcionais, singulares. Nela se evidencia o peso do drama humano,  encenando a tragédia da luta da «vila» pelo seu «sonho», e utilizando processos de desconjuntamento do tempo narrativo que antecipam o trabalho discursivo da ficção de hoje." “ A Farsa” , " O Padre", "Os Pobres”, " Os Conspiradores", " El Rei Junot", " Os Pescadores" , " As Ilhas desconhecidas", " O Avejão"(Teatro)  são também algumas das suas obras.
Inquirido a propósito da elaboração da sua biografia, Raul Brandão respondeu:" 
Da minha vida não posso acrescentar mais nada, além do que aí está em farrapos nalguns dos meus volumes."