Sesimbra
por Raul Brandão
Fevereiro - 1923
“Naquela
manhã de Maio, na minha casa, a luz entrava por todas as janelas e não deixava
margem para dúvidas: nessa manhã de Primavera, o sol lutava contra as nuvens
que teimavam em aparecer aqui e ali, o vento ia soprando baixinho, e o mar da
Baía, esse, nem mexia. Tudo estava como devia estar.
A
vila aconchegada no regaço dos montes que a amparam e desce-lhes até aos pés —
até ao grande areal exposto ao sul, que a ponta do forte Cavalo limita à
direita, e o morro do Aguincho, acabando em focinho desmedido e brutal, limita
à esquerda. A esta hora, seis da tarde, um está reduzido a sombra espessa, e o
outro escorre ainda o vermelho do último sol. Um grande forte de Lippe, raso
com o mar, ao meio da praia cheia de barcos encalhados e de rebuliço humano.
Casas pobres, casas lacustres, armazéns, redes a secar nos varais. Anoitece,
mas a vida não cessa. O peixe das caçadas é arrematado à noite, quando os
barcos regressam da pesca. Pelo areal fora, em quatro ou cinco fiadas
paralelas, cada caçada expõe o seu peixe, que reluz ao luar com um tom de prata
antiga — gorazes a um lado, e pescada, chernes a outro, todos em quatro, cinco
filas alinhadas, e o grupo de regatões à roda a disputá-los ao clarão dos
archotes.
(…)São
mais de quinhentas as embarcações varadas no areal — barcas, botes e aialas, e
além destas o batel com uma trave saliente na proa, o gavete, que serve para
levantar a testa da armação.
O
pescador de Sesimbra, que vai às vezes muito longe, não conhece a agulha de
marear. Regula-se pelas estrelas e pela malha encarnada da serra. Lá fora,
quando veem o cabo ao nível de água, dizem que estão no mar do cabo raso, e,
quando o farol desaparece, estão no mar do cabo feito. Conhecem a costa a
palmo: o mar novo, que dá o peixe-espada, o mar da regueira, que dá a pescada,
o mar da cornaca, que dá o goraz e o cachucho, e o do rapapoitas, que dá os
grandes pargos, conhecidos por pargos de morro.
(…)
Seis horas da manhã. Noite de luar claro e frio. Desço a rua ainda tonto de
sono. Ao longe o moço chama: — Ó tio Julião, vamos embora… pra-a loja!… —
Muitos homens dormem na barraca onde se guardam os apetrechos das artes. Entro.
Uma luzinha fumega. Redes, remos, cabos, pedaços de velas, e sombras, tudo
misturado. Remexem vultos no escuro. Sobre a tarimba mal distingo farrapos de
homens deitados.
—
Vá lá! Vá lá!… — diz o arrais.
Erguem-se,
juntam-se e o grande barco começa a deslizar nos panais. Salto dentro e
encolho-me ao pé do moço, na caverna. É noite, noite de lua redonda e gelada.
Os homens remam em cadência e o panorama vai saindo do escuro à medida que o
barco se afasta, todo em sombras empastadas e enormes, cortadas a pique, que se
destacam pouco e pouco umas das outras em fantasmas de penedos, em morros
salientes com buracos metidos lá dentro… Ao cimo da água, dum azul quase negro,
escorre o luar em tremulina. São mil fios de luz que estremecem ao mesmo tempo…
Sete
horas. Lua ainda muito alta aspergindo a terra de pó branco. O barco abriga-se
do noroeste junto à costa, ao pé dum grande penedo donde se levanta uma revoada
de corvos assustados. Ao nascente, sob a estrela de alva, distingue-se uma
nódoa rosa. O moço vai dizendo o nome de todas as pedras e explica:
—
Aqui estamos abrigados da lapeirada do vento…
Noto
que a luz já não é a mesma. Não é a claridade do dia, é ainda o luar. Mas o pó
branco sensibilizou-se e estremece.
—
Vamos lá! Vamos lá às artes!
Os
homens remam numa cantilena monótona: — Rema! Rema! Ceia agora!…
Ergo-me
e vejo o mar coberto de embarcações iluminadas pelo fogaréu dos archotes. São
as artes, que esperam o nascer do sol para o lanço; são as armações que começam
a alar a rede: — Rema! Rema!… — Avermelha e alastra a mancha do nascente…
Momento
único. Momento em que o branco desmaia e em que a luz do luar e a luz do sol se
entranham e misturam. O grande manto branco escorre sobre as águas e já o
nascente lhe ilumina a esteira mágica, que estremece toda. Olho para o céu: no
céu, azul às enxurradas, lavando-o do luar. Aumenta e alastra a claridade. A
lua teima, caem jorros brancos que não cessam, mas o nascente, num triunfo,
enche tudo de luz. Os grandes morros emergem da tinta azul como colossos
ensanguentados.
Mais
fragas além - toda a costa recortada.
Cabos enormes e maciços, e ao longe o Pombeiro entrando de rompante pela água
dentro. Panorama a vermelho. O sol escorre sobre as palhetas do grande manto
branco, que vibram como se fossem levantar voo. E todo esse luar magnético e
branco, ao mesmo tempo que estremece e reluz, doira. Doira um instante e morre…
É
quase dia. Sobre o nascente duas nuvenzinhas como véus. Já distingo as
silhuetas dos homens alando as artes contra a luz. Dois barcos puxam a rede e
juntam-se à medida que se aproximam do saco.
—
Leva arriba! Leva arriba!
—
Agora! Agora!
O
saco está à borda. Veem-se as bolhas cobrindo a superfície da água: o
gorgolhido. A sardinha não tarda a vir com a cabeça ao de cima. Já os homens
começam a tirá-la para dentro dos barcos com as xalavaras.
—
É pouca…
—
É uma teca — diz o moço, designando a pequena porção de peixe.
Sete
e meia. É dia claro. Ao pé de mim mergulham dois patos pequenos de dorso escuro
e peito branco, dois macorrilhões, e um roaz salta fora da rede. Os primeiros
raios de sol batem em cheio em Sesimbra apinhada à beira- -mar.
—
Vamos agora ao calhau.
É
a armação valenciana, de que se veem as grandes boias de cortiça ao lume de
água — construção complicada que se compõe de corpo, rabeira e legítima. O
corpo compreende a câmara, o bucho e o copo, trapézios mais ou menos regulares,
fechados por redes verticais que vão da superfície até ao fundo. A rabeira vem
da terra até à boca da armação, de maneira que a sardinha, encontrando-a,
caminha até à boca do copo, onde se mete.
Quando
chego, já os homens, de avental de oleado, puxam o copo para a borda dos
barcos, apertando pouco e pouco o cerco.
—
Ou! Ou!
—
Leva arriba! Leva arriba!
O
movimento dos braços acentua-se. Curvam-se, agarram a rede, erguem-na até si.
O
barco, cheio de água, adorna.
—
Ou! Ou! Vai! Vai!…
Estamos
quase à testa do copo e a rede metida no meio dos barcos. A sardinha salta.
Mergulham as grandes xalavaras encabadas num pau dentro do saco, tirando-as
cheias de vida.
—
Venha de lá uma caldeirada!
Vamos
regressar. A vaga estoira na areia.
O
mar está corso. — À terra! À terra! À espia! — grita a companha.
Aproximamo-nos. Agarram-se a um cabo fixo no mar e vão-no puxando a si: o barco
corre direito à maresia. É o momento dramático: a onda apanha-o, impele-o,
salpica-nos de espuma e atira-nos pela areia acima…”
Raul
Brandão, in “Os
Pescadores”, Publicações Europa-América, pp.128-132 Sobre o livro:
Raul Brandão publicou este extraordinário registo de uma viagem pelo seu país, há cem anos.
Um livro em que cada página é uma tela do que se lhe vai descortinando ao longo do litoral português . Um hino à costa portuguesa.
Do Norte ao Sul , do Minho ao Algarve, “esta nossa terra portuguesa vai pela costa fora sempre de braços abertos para o mar, estreitando-o amorosamente contra si”.
Traça em magníficas telas ricas de cor, de luz, os vários elementos colhidos na natureza. Desde o nascer do sol ao entardecer, nas suas várias cambiantes, conforme o lugar e o tempo.
Além de quadros paisagísticos, também oferece sugestivos retratos – o do faroleiro, a velha da Foz do Douro, a sanjoaneira, a mulher da Afurada, de Mira “feia mas esbelta (que) tem ar grave e senhoril quase sempre”, a heroica Ti Ana Arneira da Gafanha, a mulher da Murtosa “baixa e atarracada”, a de Ovar “delicada e forte, alta e bem proporcionada, cheia de predicados domésticos e morais”, a poveira “a bem dizer – um homem”, a Rata da Foz. É evidente a simpatia de Raul Brandão pela sua dolorosa vida difícil, de trabalho, de explorados.
Essa circunstância , a das mulheres que perdem os seus homens, maridos e filhos, para o mar, mas que continuam vivas e a viver desse mesmo mar que lhes roubou os seus, percorre todo este livro. Assim foi , com a própria avó do autor, viúva aos 20 anos.
O livro é dedicado “ à memória do seu avô , morto no mar, nado e criado na Foz do Douro".
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