segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Património Cultural em Inglaterra

 Jaime Batalha Reis por Columbano Bordalo Pinheiro,
óleo sobre tela, 1892

Património Cultural em Inglaterra
Um exemplo e alguns nomes
por Eugénio Lisboa 

O Património Cultural de uma nação, de uma região ou de uma comunidade
é composto por todas as expressões materiais e espirituais que a constituem,
incluindo o meio ambiente natural.
Declaração de Caracas, 1992

"Em princípio de 2005, recebi do Dr. Diogo Pires Aurélio, então Director da Biblioteca Nacional, o pedido de um depoimento sobre património documental no estrangeiro, para o caso, baseado na minha estadia em Londres, durante 17 anos (1978 – 1995), como conselheiro cultural da nossa embaixada, ali sediada.
Escolhi o que se passara com o espólio de Batalha Reis e fiz um curto texto, que a seguir reproduzo, por me parecer que contém alguns ensinamentos sobre que vale a pena meditar. Devo dizer, sem falsa modéstia, que me orgulho de ter salvo de um provável desaparecimento este valioso espólio. Não foi o único. Também as cartas de Trindade Coelho dirigidas por este escritor à docente  alemã da universidade de Hamburgo, Louise Ey, que me foram enviadas de Hamburgo para Londres pela Dra. Fátima Brauer, daquela mesma universidade,  salvando-as, no último minuto,  de serem varridas para o lixo pelo pessoal da limpeza, foram por mim imediatamente remetidas para a Biblioteca Nacional, onde actualmente se encontram (foram recentemente publicadas). Segue-se o meu texto, publicado na Revista da Biblioteca Nacional:
 
Em Maio de 1978 fui colocado na Embaixada de Portugal em Londres, como Conselheiro Cultural. E, dois ou três anos depois, numa vinda a Lisboa, em férias, fui contactado pelo João Palma-Ferreira, então director da Biblioteca Nacional: queria alertar-me para a existência, em Inglaterra, do espólio do antigo diplomata, homem de letras e companheiro de geração de Eça de Queirós e Antero de Quental, Jaime batalha Reis. De facto, no seu périplo de diplomata, Batalha Reis residira largos anos no país de Dickens e chegara a ser eleito fellow da Royal Geographical Society. Os seus papéis estariam, naquela altura, entregues a um sobrinho-neto do diplomata, James Cinatti Burrell, a viver algures para os lados de Portsmouth, no sul de Inglaterra.
Os espólios (literários e outros) constituem quase sempre um enfadonho quebra-cabeças para os herdeiros e para os eventuais necessitados de a eles terem acesso. No processo – frequentemente kafkiano – muito se perde ou se destrói, por suspeição, por ressentimento, por inveja, por desleixo, por pudor, por provincianismo e até por pura ganância. Não, como se vai ver, no caso vertente. Aqui, o problema parecia, desde logo, ser outro. Onde localizar o detentor do espólio? Palma-Ferreira deu-me um palpite pouco auspicioso: o poeta Rui Cinatti, relacionado  com James Burrell, pelo lado dos Cinatti (a que pertencia a mulher de Batalha), teria, algures, entre os seus desarrumadíssimos papéis, o endereço de Burrell [solicitador algures para os lados de Portsmouth]. Desanimado, procurei o poeta: mostrou a melhor boa vontade do mundo e lembrava-se de ter o endereço entre as páginas de um livro qualquer. Prometeu procurá-lo e enviar-mo para Londres… Parti, mais ou menos convencido de que teria que seguir outras vias de pesquisa. Encontrar um papel entre as páginas de um livro entre desarrumados milhares deles… Mais valia nem pensar nisso. Todavia, para meu espanto e alegria, não muitos dias depois do meu regresso a Londres, recebi uma carta  [de Cinatti]com o endereço de James Cinatti Burrell:
 
11, Lower Quay Close
Fareham
Hants. PO 16 ORD
 
Tendo entrado em contacto com Burrell – cujo telefone obtive, a partir do seu nome e endereço – combinei com ele ir visitá-lo, para ver e receber o desejado espólio. Na data combinada, meti-me no meu carro e dirigi-me a casa do sobrinho de Beatriz Batalha Reis, no endereço que me fora facultado pelo co-fundador e co-director dos Cadernos de Poesia. O espólio que me foi mostrado continha-se todo no interior de uma daquelas enormes caixas de chapéus que se usavam em viagem no século  XIX [e, provavelmente, no começo do século XX]: cartas (entre outras, de Eça de Queirós), manuscritos (um tratado de estética, copiado com letra amorosamente desenhada), etc. E, fixada no tampo, cópia de uma carta que, em tempos, Beatriz Batalha Reis (filha do diplomata) dirigira ao nosso Ministério da Educação, oferecendo o espólio do pai. A carta, como não é difícil de imaginar, ficara sem resposta [assim mo disse Burrell]. Alguém em cuja secretária a missiva desaguara não sabia, talvez, quem era aquele «emigrante» cuja papelada sem valor a filha queria impingir… Entre os papéis, escrito em pequenas agendas e cintas de pacotes de jornais, o diário – interessantíssimo e até empolgante – que Beatriz Batalha Reis mantivera durante o período da revolução de 1917, em que Batalha Reis estivera como chefe de missão em S. Petersburgo.
Imediatamente me ofereci para ali voltar, acompanhado do nosso embaixador, Freitas Cruz, e levar a caixa para a embaixada – o que foi feito, alguns dias depois. Mas havia mais: pendurado numa das paredes de uma saleta sombria, um magnífico retrato de Batalha Reis por Columbano. Perguntei a James Burrell, que me parecia um «bom herdeiro, isto é, não ganancioso e mostrando um genuíno afecto e nostalgia por aqueles seus antepassados (e, muito em particular, pela sua tia Beatriz), se aceitaria vender o retrato de Batalha Reis ao Estado Português, mantendo o seu usufruto, enquanto vivo. Disse logo que sim e disse ainda que não iria pedir muito dinheiro, tal a satisfação que lhe dava saber que a obra de arte iria para o melhor destino possível. Escrevi, imediatamente, de regresso a Londres, uma informação de serviço, com a proposta de aquisição do quadro de Columbano e um ofício de cobertura assinado pelo Embaixador, que aderira, com entusiasmo, à ideia. A resposta ao ofício…ainda não chegou (isto é, não tinha chegado, até à minha saída de Londres, em Maio de 1995). Não sei se James Burrell é ainda vivo. E muito menos sei onde se encontra o belo quadro de Columbano. Ainda comigo em Londres, o retrato do companheiro de Eça esteve em exposição na Biblioteca Nacional por cortesia de Burrell e com o apoio logístico da embaixada, em Londres. O interessantíssimo diário de Beatriz Batalha Reis – a única parte do espólio que Burrell não doava à Biblioteca Nacional, pois queria ficar com ele – foi emprestado a Freitas Cruz, que o queria ler e estudar e o levou consigo para Madrid, onde foi colocado como chefe de missão. Tive o cuidado de verificar que o fazia com a anuência de Burrell. Freitas Cruz viria a falecer num acidente de automóvel, não muito depois da sua chegada a Madrid. Fiquei, naturalmente, inquieto com o destino do diário, o que me levou, antes de sair de Londres, a telefonar a Burrell, que me sossegou, dizendo que recuperara os apontamentos da tia.
Esta «novela exemplar» ilustra, por mais de um lado, o nosso desleixo patrimonial: o espólio de uma importante figura da famosa «geração de 70» é oferecido (sem contrapartida) ao Estado Português, nos anos 60 (se a memória me não falha, em 1964). Quase 20 anos depois, ainda não havia resposta. Até para receber nos fazemos caros! Por outro lado, um dos mais belos quadros de Columbano, retratando a figura do companheiro de Eça e Antero, poderia fazer hoje parte do nosso património cultural, a preço não muito elevado. Não foi julgado conveniente…responder sim ou não! (…)”
Eugénio Lisboa, in Acta Est Fabula, Memórias- IV - Peregrinação: Joanesburgo. Paris.. Estocolmo. Londres. (1976-1995), Editora Opera Omnia, Outubro de 2014, pp.443 -446

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