Os clássicos mudam muito de opiniãopara agradar os que os interpretam.Millôr Fernandes
O eminente Tzevetan Todorov troçou de tudo isto, nestes termos: “Um texto não passa de um piquenique, em que o autor traz as palavras e os leitores o sentido.” Num vigoroso ensaio – AGAINST INTERPRETATION . a temível Susan Sontag fulminou esta tara interpretativa, afirmando: “A interpretação é a vingança dos intelectuais contra a arte.” E ainda: “Em vez de uma hermenêutica, do que precisamos é de uma erótica da arte.”
O curioso é que muitos grandes e acutilantes leitores, como Nietzsche, fulminaram há muito este abuso interpretativo: “O texto desapareceu debaixo da interpretação”, disse o filósofo alemão, no seu PARA ALÉM DO BEM E DO MAL. E o eclético e celebrado Harold Bloom, tentou mostrar que esta prática era milenar, ao dizer isto: “Penso que o Novo Testamento grego é a mais forte e mais bem sucedida desleitura de um grande texto anterior, em toda a história da influência.”
Nestes despautérios de interpretação, teve grande visibilidade a sexualidade pós-freudiana. Aí, valeu tudo. Numa ida ao Rio de Janeiro, a propósito de um congresso dedicado a José Régio, apareceu-me uma deslumbrada, com a descoberta de que o admirável romance O PRÍNCIPE COM ORELHAS DE BURRO, de José Régio, mostrava que o escritor era homossexual. Estava então muito na moda, descodificar homossexualidade escondida por todo o lado. Ora nem Régio era homossexual, nem aquele romance tinha nada a ver com sexo ou seus arredores. Mas a tese deve ter tido filhos, porque estas descobertas costumam ser muito fecundas.
Outro exemplo extraordinário foi este, acontecido com a encenação da peça de Montherlant, LE MAÎTRE DE SANTIAGO. A obra é limpamente clássica e tem como protagonista Don Alvaro, Mestre daquela Ordem, cristão sem mácula, totalmente incorruptível. Alguns nobres espanhóis querem usar o seu bom nome, para cobrir negócios sujos, na América recém descoberta. Para aliciá-lo, prometem-lhe arranjar um “bom casamento” para a filha Mariana. Mas esta é exactamente como o Pai. Num diálogo, de um sublime austero, Don Alvaro sonda a filha. Neste momento, Montherlant dá uma pequeníssima indicação de cena: a meio do diálogo, o velho Mestre apercebe-se de um cabelo no vestido da filha e sacode-o. O autor da peça terá querido significar que a mais austera figura, e mesmo num momento de grande tensão, pode afligir-se com uma pequeníssima coisa que desfigura o vestuário da filha. Esta ínfima indicação de cena desencadeou na crítica teatral de Paris as mais estapafúrdias “interpretações”: uma delas ia no sentido de dizer que aquele gesto significava que Montherlant tinha querido ter relações sexuais com a mãe, outro, ainda mais ousado, afirmava estar ali a prova de que o dramaturgo sofria de um complexo de castração! Eis a interpretação no seu deslumbrante pior.
No teatro, onde os encenadores “sabem mais” do que os dramaturgos, já vi desastres semelhantes com grandes encenadores. Cito um caso. Quando vivia em Londres, o grande encenador Peter Hall, resolveu encenar a grande tragédia de Ibsen, O PATO SELVAGEM. Peter Hall acabara de “descobrir” haver na peça um subtexto cómico e resolveu transformar aquela pungente tragédia numa quase comédia. Acontece que o tal subtexto não era nada cómico, mas, sim, dilacerantemente patético. Por outro lado, Peter Hall, embarcado na sua desleitura, esqueceu-se de que na peça de Ibsen uma criancinha se suicida, no final, o que não costuma acontecer nas comédias. Dislates destes são frequentes, com as peças de Shakespeare, o que levou o impagável e genial Mel Brooks a parodiar, num seu filme, estes atrevimentos de encenadores, fazendo do sinistro Ricardo III, um invertido efeminado, grotescamente amaneirado. Haverá quem descubra na peça de Shakespeare um subtexto qualquer, que justifique a metamorfose. Foram estas e outras que levaram Orwell a afirmar: “Se realmente existe essa coisa de se dar uma volta no túmulo, Shakespeare deve fazer uma data de exercício.”
Eugénio Lisboa, em 16.08.2023
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