“…Inclinado sobre a água, contemplava os últimos reflexos rosados do sol poente; a fiada de casas, escurecidas pela obscuridade progressiva; uma janelinha afastada, ao longe, em qualquer trapeira, na margem esquerda, que brilhava precisamente na flama do último raio que nela batia por um instante; a água do canal que ia escurecendo e, aparentemente, olhava para essa água com maior atenção. Finalmente alguns circulozinhos vermelhos dançaram diante dos seus olhos; as casas foram-se à deriva; os transeuntes, as margens, as carruagens… tudo aquilo se pôs a dar voltas e a bailar na sua frente. De repente estremeceu, liberto talvez da vertigem por um espetáculo selvagem e horrível. Parecia-lhe que alguém estava a seu lado, à sua direita, ombro a ombro; voltou o rosto e viu uma mulher alta, de chapéu na cabeça, o rosto amarelo, afilado, vincado e os olhos inflamados, encovados. Olhava-o nos olhos; mas era evidente que não via ninguém. De repente, apoiou a mão direita no peitoril, levantou o pé direito e subiu para o gradeamento de ferro, depois do que fez o mesmo com o pé esquerdo, e atirou-se ao canal. A água suja chapinhou e engoliu a vítima num instante; mas passado um minuto, a afogada tornou à superfície, a corrente foi-a levando suavemente para baixo, com a cabeça e os pés mergulhados e o tronco para cima com as saias, sopradas e flutuantes, fazendo balão.”
Fiódor Dostoievski, in Crime e Castigo, Livraria Civilização-Editora, Porto
"A coisa mais indispensável a um homem é reconhecer o uso que deve fazer do seu próprio conhecimento" Platão
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