O
tal prazer da escrita
por Eugénio Lisboa
“A escrita é muitas
coisas mas é também uma forma de salvação: ela descobre, ela acicata a memória,
fecha-nos às aflições do momento, mergulhando-nos num universo prodigioso,
escudado e inacessível às turbulências exteriores. E cura-nos, pela alegria que
nos dá o encontrar as palavras certas para exprimir o inefável.
A escrita é a melhor
arma de defesa e de ataque de que dispomos. Nenhuma nos defende tão bem de uma
ferida ou faz, nos outros, uma ferida tão perene.
A escrita foi inventada
por alguém que precisava muito dela, para registar informações. Assim, começou
por ser útil e passou a ser agonicamente necessária. Escrevo, logo existo. Mas
também: escrevo, logo não sofro. Quando escrevo, falo de um sofrimento que já
foi, mas que deixa de o ser, no momento em que o escrevo. A funda alegria de o
escrever mata o sofrimento que já se sentiu, mas se apaga ante o fulgor da
escrita. Como dizia Montherlant, o escritor é aquele ser peculiar, que sofre,
não sofrendo.
O Camões que escreveu o
“Alma minha” não sentia, no momento em que a invocava, saudades da morta, sua
amada. O que ele sentia, no momento da escrita, era a alegria de escrever uma
saudade, que sentira, antes de a escrever, mas que não podia sentir, no momento
em que a escrevia. O escritor é um monstro que mata, sem escrúpulos, no momento
de o celebrar, o mais profundo sentimento que antes o afligira, para melhor o
poder glosar, com os utensílios da sua arte. A alegria de escrever, o tal
prazer da escrita tem muito de inumano. O grande escritor é, na sociedade em
que vive, um suspeito a vigiar, porque pode ser perigoso. Por isso, o escritor
Tonio Kröger, da famosa novela de Thomas Mann, ao regressar um dia, no tarde da
sua vida, coberto de glória, à sua terra natal, torna-se suspeito, aos olhos da
polícia local, que o toma por um malfeitor…
Não nos esqueçamos de
que o grande William Faulkner declarou um dia que seria capaz de matar meia
dúzia de velhinhas, se isso lhe permitisse escrever a belíssima ODE A UMA URNA
GREGA, do poeta John Keats. Um poeta é capaz de tudo, mesmo de vender a alma ao
diabo, para acertar um verso ou colocar uma vírgula no lugar certo. Quem não
compreende isto não compreende nada deste ofício nem dos seus oficiantes.”
Eugénio
Lisboa, em 20.06.2023
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