"Quando se percorre a poesia escrita por mulheres ao longo do século XX português, o nome de Natália Correia continua a surgir como um dos que causaram uma repercussão mais duradoura, quer pela sua personalidade forte e polémica, quer pelo alcance da sua obra literária, na qual sempre se manifestou uma vocação poderosamente dionisíaca e por isso excessiva, capaz de apreender magicamente a realidade e de a transfigurar mediante uma rica imaginação metafórica, sobretudo a partir de "Dimensão Encontrada" (1957), já que os seus primeiros livros ("Rio de Nuvens", de 1947, e "Poemas", de 1955) exprimiam ainda uma atitude lírica mais tradicional.
É antiga a questão de saber até que ponto Natália Correia poderá ou não considerar-se uma escritora surrealista, embora nunca tenha pertencido a qualquer movimento com esse nome: definida algures por Claude Roy como «la violence surréaliste faite femme», a própria Autora terá admitido alguma proximidade com a visão surrealista do mundo, essencialmente no que toca a uma «identificação entre a poesia e a magia», na medida em que ambas procuram o acesso a uma alquimia libertadora. Trata-se, no fundo, de uma radical vontade criadora, de um desejo de libertar a linguagem de todos os constrangimentos e de dar livre curso à imaginação, como podemos sentir num texto que nos fala de uma ressurreição apta a transformar a morte em vida e a tristeza em alegria: «A harpa do vento / e os meus dedos de ventania / compuseram uma canção / da mais fantástica alegria. // (...) // É uma onda de magia / onde se enrolam os mortos / erguidos da terra fria / dum rosto que lhes pintou / a nossa melancolia.»
Foi sob o efeito do irresistível impulso dessa «onda de magia» que se construiu o essencial da escrita de Natália, em que um dos traços mais flagrantes consiste numa posição (sempre reafirmada) de rebeldia diante das instituições e dos poderes estabelecidos ou de quaisquer regras impostas pela força. Até certo ponto, é como um sinal dessa rebeldia que se compreendem as incursões da Autora no campo da poesia satírica e humorística, dirigida contra figuras ou acontecimentos da esfera política, como sucede na sequência das «Cantigas de Risadilha» — composta por poemas que ridicularizam episódios da vida parlamentar que Natália acompanhou enquanto foi deputada —, assim como em toda a "Epístola aos Iamitas" (1976), cujos sonetos constituem reflexões ora entusiásticas, ora sobretudo corrosivas, a respeito do Portugal pós-25 de Abril e disso a que na altura se chamou o P.R.E.C. (Processo Revolucionário Em Curso), perante o qual se manifesta por vezes uma dolorosa desilusão: «E veio Abril: cravos camonianos / aparelharam da liberdade as barcas. / Do verde pinho as flores foram-me enganos, / as tecelãs do sonho eram as parcas. // Da podridão variam os estados: / magicamente os nomes são mudados; / intacto o pasto vil das varejeiras.»
A mesma faceta surge igualmente em certos poemas isolados, como a célebre «Queixa das Almas Jovens Censuradas», fazendo eco de um profundo grito de revolta que preza, acima de tudo, a liberdade do poeta contra todas as formas de sujeição. E é também isso a estar em jogo num outro texto muito conhecido («A Defesa do Poeta»), aliás escrito com a intenção de ser lido no Tribunal Plenário que no tempo da ditadura acusou Natália Correia: «Senhores juízes sou um poeta / um multipétalo uivo um defeito / e ando com uma camisa de vento / ao contrário do esqueleto. // (...) // Sou (...) / uma avaria cantante / na maquineta dos felizes. / (...) // Sou uma impudência a mesa posta / de um verso onde o possa escrever. / Ó subalimentados do sonho! / A poesia é para comer.»
Lido este excerto, convirá atender a dois aspectos: por um lado, mesmo levando em conta o intuito profundamente afirmativo do texto (que desenvolve a vigorosa declaração: «sou um poeta»), o lugar de quem escreve poesia surge relacionado com uma excepcionalidade inquietante ou perturbadora, já que se identifica com um «defeito» ou uma «avaria cantante / na maquineta dos felizes», que corresponderiam à cinzenta maioria; por outro lado (e refiro-me agora aos dois últimos versos), acentua-se a dimensão gustativa, sensorial ou carnal da poesia, inscrevendo-se num entendimento global do mundo em que «o espírito é tão real como uma árvore», pressupondo uma integração harmoniosa na natureza. Ficamos, portanto, dentro de uma unidade fundamental entre todas as coisas humanas e cósmicas, naturais e divinas: «Vem das estrelas o sangue que nos guia / E na amorosa perfeição da carne / Está toda a eternidade resumida.»
Perante versos como estes, pode dizer-se sem grande exagero que Natália Correia nos deu, do princípio ao fim da sua obra, uma visão religiosa da existência, alicerçada não em qualquer adoração de um Deus ou num rito eclesiástico específico, mas numa espécie de comunhão pagã entre o eu e tudo o que o rodeia, religando-se a um universo do qual pretende auscultar os sinais, como se estivesse diante de um segredo que só a alguns é permitido desvendar e que a poesia aguarda, como se esperasse «o romper da manhã na noite mística». De facto, na escrita de Natália o conhecimento quase nunca se produz pela via intelectual e corresponde, acima de tudo, ao amor: fiel à tradição lírica portuguesa e à sua predilecção por temas amorosos, a Autora convoca sentimentos simultaneamente carnais e espirituais, porque neste caso é a partir dos sentidos que se intui a hipótese (ou a certeza?) de um sentido que os excede — veja-se o início do poema «Pórtico»: «Corpo, alma, razão, já os cantei, / estreme, sem me isentar em pseudónimos. / Antífrases de mim as assinei. / Contrários indaguei: eram sinónimos. // O Espírito agora cantarei. / Corpo, alma, razão lhe são compósitos.»
Também enquadrado no mesmo propósito de união e ampla comunhão universais está um politeísmo estrutural que leva a poesia desta «feiticeira cotovia» a celebrar a beleza do mundo, conotando-a com a presença do sagrado que o povoa e assim reflecte os poderes de uma pluralidade de deuses e deusas cujo culto, em vez de exigir submissão — «Os deuses não nos querem de joelhos» —, nos convida, pelo contrário, a um esfusiante cântico da vida e do amor, do qual podem ser emblemas os Jardins de Adónis, onde se recusam os labirintos da racionalidade e se declara a superioridade das sensações, tornadas elas mesmas divinas: «Sentir nos baste. Ideias são reveses. / Da vida, as naturais disposições, / Sigamos, Flávio. Até que sejam deuses / As nossas sensações.»
Perto das sensações mais vibrantes se encontram, aliás, todos os elementos de uma natureza cujo incognoscível daimon feminino se condensa na famosa imagem da «Mátria», nem sequer demasiadamente erotizada no sentido mais comum que atribuímos à sexualidade humana, mas sobretudo transmissora de paz, de bem-estar e de reconciliação com um estado primitivo, maternal ou genesíaco do universo: «E se o mundo em ti principiava, / No teu mistério entre astros absortos, / Suavemente, ó mãe, tudo termina.» Também o Amor (com maiúscula) ultrapassa, deste modo, as habituais fronteiras que limitam a consciência individual, elevando-se ao mais alto grau de gnose mística e adquirindo o estatuto de uma sabedoria esotérica comparável à de uma verdadeira alquimia: «Indemne atravessei as labaredas / porque o Amor faz a Obra / e o fogo faz o Amor.»
Para concluir, digamos que toda a poesia de Natália Correia configura um «ofício das trevas», mergulhando nas águas de mistérios que não ousa decifrar e assentando numa ideia (surrealista) de libertação total do ser, num processo de comunhão iniciática. Trata-se de um ritual posto em jogo não apenas graças aos já mencionados poderes alquímicos da escrita, mas também por uma abertura à «Saudade» portuguesa que sempre fascinou a Autora — essa «retráctil flor da ausência», cujo místico perfil se recorta sobre o passado e sobre o futuro, parecendo conferir ao conjunto da obra de Natália Correia uma indestrutível crença em qualquer coisa que extravasa os mesquinhos limites da razão humana. Na esteira dos românticos ou dos seus herdeiros surrealistas, é sempre muito para lá de tais limites que esta poesia nos deseja convocar, arrastando-nos para uma dimensão soberanamente libertadora da realidade e da linguagem — como se lê no texto final dos "Sonetos Românticos", que funciona como um «credo»:
«Creio nos anjos que andam pelo mundo, / Creio na Deusa com olhos de diamantes, / Creio em amores lunares com piano ao fundo, / Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes, // Creio num engenho que falta mais fecundo / De harmonizar as partes dissonantes, / Creio que tudo é eterno num segundo, / Creio num céu futuro que houve dantes, // Creio nos deuses de um astral mais puro, / Na flor humilde que se encosta ao muro, / Creio na carne que enfeitiça o além, // Creio no incrível, nas coisas assombrosas, / Na ocupação do mundo pelas rosas, / Creio que o Amor tem asas de ouro. Ámen».
Fernando Pinto do Amaral ("Violência e Paixão", prefácio a "Antologia Poética", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002)
Queixa das Almas Jovens Censuradas
Dão-nos um lírio e um canivete
E uma alma para ir à escola
Mais um letreiro que promete
Raízes, hastes e corola.
Dão-nos um mapa imaginário
Que tem a forma duma cidade
Mais um relógio e um calendário
Onde não vem a nossa idade.
Dão-nos a honra de manequim
Para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos o prémio de ser assim
Sem pecado e sem inocência.
Dão-nos um barco e um chapéu
Para tirarmos o retrato.
Dão-nos bilhetes para o céu
Levado à cena num teatro.
Penteiam-nos os crânios ermos
Com as cabeleiras dos avós
Para jamais nos parecermos
Connosco quando estamos sós.
Dão-nos um bolo que é a história
Da nossa história sem enredo
E não nos soa na memória
Outra palavra para o medo.
Temos fantasmas tão educados
Que adormecemos no seu ombro
Sonos vazios, despovoados
De personagens de assombro.
Dão-nos a capa do evangelho
E um pacote de tabaco.
Dão-nos um pente e um espelho
Para pentearmos um macaco.
Dão-nos um cravo preso à cabeça
E uma cabeça presa à cintura
Para que o corpo não pareça
A forma da alma que o procura.
Dão-nos um esquife feito de ferro
Com embutidos de diamante
Para organizar já o enterro
Do nosso corpo mais adiante.
Dão-nos um nome e um jornal,
Um avião e um violino.
Mas não nos dão o animal
Que espeta os cornos no destino.
Dão-nos marujos de papelão
Com carimbo no passaporte.
Por isso a nossa dimensão
Não é a vida. Nem é a morte.
Natália Correia , in "Dimensão Encontrada", Lisboa: Edição de autor, 1957; "O Sol nas Noites e o Luar nos Dias I", Lisboa: Projornal/Círculo de Leitores, 1993 – p. 167-168; "Poesia Completa", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999 – pp. 121-122.
O Poema de Natália Correia por José Mário Branco – voz e viola acústica de base. Willy Lockwood – contrabaixo.Gilbert Roussel – acordeão. Arranjos e direcção musical – José Mário Branco. Gravado no Strawberry Studio, Château d’Hérouville (perto de Paris), em Fevereiro de 1971 Técnico de som – Gilles Sallé. Masterização digital – José Fortes
Poema Destinado a Haver Domingo
Bastam-me as cinco pontas duma estrela
E a cor dum navio em movimento.
E como ave, ficar parada a vê-la.
E como flor, qualquer odor no vento.
Basta-me a lua ter aqui deixado
Um luminoso fio do cabelo
Para levar o céu todo enrolado
Na discreta ambição do meu novelo.
Só há espigas a crescer comigo
Numa seara para passear a pé
Esta distância achada pelo trigo
Que me dá só o pão daquilo que é.
Deixem ao dia a cama dum domingo
Para deitar um lírio que lhe sobre.
E a tarde cor-de-rosa num flamingo
Seja o tecto da casa que me cobre.
Baste o que o tempo traz na sua anilha
Como uma rosa traz Abril no seio.
E que o mar dê o fruto duma ilha
Onde o Amor por fim tenha recreio.
Natália Correia , in "Passaporte", Lisboa: Edição de autor, 1958; "O Sol nas Noites e o Luar nos Dias I", Lisboa: Projornal/Círculo de Leitores, 1993 – p. 205; "Poesia Completa", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999 – p. 153-154
O Poema de Natália Correia, na voz de Helena Oliveira (in "Helena Cant'Autores Açorianos"). Música de Aníbal Raposo , 2007)
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