terça-feira, 17 de janeiro de 2023

"Rebento de fome!"


O actor Robert Pattinson, no papel de Georges Duroy,  em Bel-Ami, 
foto da Columbia Pictures

Bel - Ami
por Guy de Maupassant
I
"Depois de a caixeira lhe ter dado o troco da sua moeda de cem soldos, Georges Duroy saiu do restaurante. De boa figura que era, por natureza e atitude de ex­‑oficial subalterno, endireitou a cintura, compôs o bigode com um gesto militar e familiar, e lançou sobre os retardatários comensais do jantar um olhar rápido e circular, um desses olhares de rapaz bem­‑parecido, que se alargam como uma rede lançada à água. As mulheres tinham levantado a cabeça olhando para ele, três jovens operárias, uma professora de música de meia­‑idade, mal penteada, desmazelada, enfeitada com um chapéu sempre manchado de pó e enfiada num vestido que lhe caía mal, e duas burguesas na companhia dos seus maridos, freguesas daquela casa de pasto a preço fixo. No passeio, ficou por um instante imóvel, perguntando­‑se o que faria a seguir. Era o dia 28 de Junho, e restavam­‑lhe no bolso três francos e quarenta até ao fim do mês. O que correspondia a dois jantares sem almoços, ou dois almoços sem jantares, à sua escolha. Considerou que as refeições da manhã custavam vinte e dois soldos, em vez dos trinta das do fim da tarde, e que lhe restaria, se se contentasse com os almoços, um franco e vinte cêntimos suplementares, o que representava ainda duas colações de pão e salsichão, mais duas cervejas no bulevar. Eram estes a grande despesa e o grande prazer das suas noites; e começou a descer a Rue Notre­‑Dame­‑de­‑Lorette. Movia­‑se como no tempo em que usava o uniforme dos hussardos, com o peito para fora, as pernas ligeiramente entreabertas como se acabasse de apear­‑se do cavalo; e avançava brutalmente pela rua cheia de gente, atropelando ombros, empurrando quem passava para não se desviar do seu caminho. Inclinava ligeiramente sobre uma orelha o  seu chapéu alto bastante usado, e batia com o calcanhar na calçada. Tinha o ar de estar sempre a desafiar alguém, os transeuntes, as casas, a cidade inteira, afectando a pose de um garboso militar que se adapta mal à vida civil. Apesar de vestir um fato completo que não valia mais de sessenta francos, mantinha uma certa elegância ostensiva, um tanto vulgar, mas real. Alto, bem­‑feito, louro, de um louro acastanhado vagamente ruço, com um bigode revirado, que parecia espumar­‑lhe do lábio, olhos azuis, claros, fendidos por uma pupila mínima, cabelos naturalmente anelados, divididos por uma risca ao meio do crânio, parecia de facto o personagem mau dos romances populares. Estava uma dessas noites de Verão em que falta o ar em Paris. A cidade, quente como uma estufa, parecia transpirar na noite sufocante. Os esgotos sopravam pelas suas bocas de granito os seus hálitos empestados, e as cozinhas subterrâneas soltavam na rua, pelas janelas baixas, os miasmas repugnantes das águas de lavar a louça e dos molhos pouco frescos. Os porteiros, em mangas de camisa, a cavalo em cadeiras de palha, fumavam cachimbo às portas de serviço, e os transeuntes moviam­‑se com um passo acabrunhado, a fronte nua, o chapéu na mão. Quando chegou ao bulevar, Georges Duroy parou de novo, indeciso quanto ao que iria fazer. Tinha agora vontade de continuar até aos Champs­‑Élysées e à Avenue du Bois­‑de­‑Boulogne para apanhar um pouco de ar fresco sob as copas das árvores; mas trabalhava­‑o também um desejo, o de um encontro amoroso. Como lhe apareceria ela? Ignorava­‑o completamente, mas esperava-a havia três meses, todos os dias, todas as noites. Por vezes, entretanto, graças à sua bela presença e às suas maneiras galantes, ia roubando, aqui e ali, um pouco de amor, mas continuava a esperar mais e melhor. Com os bolsos vazios e o sangue a ferver, inflamava­‑se ao contacto das que rondam nas esquinas, murmurando: «Quer vir comigo, bonito rapaz?», mas não se atrevia a segui­‑las, pois não podia pagar­‑lhes; e esperava também outra coisa, outros beijos menos vulgares. Todavia, gostava dos lugares onde as mulheres públicas pululam, os seus bailes, os seus cafés, as suas ruas; gostava de se encontrar no meio delas, de lhes falar, de as tratar por tu, farejar os seus perfumes violentos, senti­‑las perto de si. Sempre eram mulheres, mulheres de amor. E ele não as desprezava com esse desprezo inato dos homens com família. Virou na direcção da Madeleine e seguiu a onda da turba que se deslocava vergada pelo calor. Os grandes cafés, cheios de gente, transbordavam sobre os passeios, exibindo à luz brilhante e crua das suas fachadas de vidro iluminadas o seu público de bebedores. Diante destes, em cima de pequenas mesas quadradas ou redondas, os copos continham líquidos vermelhos, amarelos, verdes, acastanhados, de todos os matizes; e no interior dos jarros viam­‑se cintilar os grandes cilindros transparentes de gelo que arrefeciam a bela água clara. Duroy afrouxara o passo, e a vontade de beber ressequia­‑lhe a garganta. Apossava­‑se dele uma sede quente, uma sede de Verão, que o fazia pensar na sensação deliciosa das bebidas frescas inundando a boca. Mas, ainda que não bebesse mais do que duas cervejas nessa noite, teria de dizer adeus à magra ceia do dia seguinte, e ele conhecia já de sobra as horas esfaimadas do fim do mês. Disse de si para si: «Vou ter de aguentar até às dez horas e tomo então a minha cerveja no Américain. Mas raios me partam se não estou a rebentar de sede!» E olhava para todos aqueles homens sentados a uma mesa e que bebiam, todos aqueles homens que podiam matar a sede a seu bel­‑prazer. Seguia o seu caminho, passando diante dos cafés com um ar decidido e enérgico, e avaliava de relance, pelo aspecto, pelo vestir, o dinheiro que cada consumidor teria no bolso. E invadia­‑o uma espécie de cólera contra aqueles seres sentados e tranquilos. Quem lhes revolvesse os bolsos encontraria ouro, moedas prateadas e de soldo. Em média, cada um deles teria consigo pelo menos uns dois luíses: ora, como eram à vontade uma centena no café, cem vezes dois luíses são quatro mil francos! «Os porcos!», murmurava ele, sem deixar de se menear com elegância. Se pudesse apanhar um deles à esquina de uma rua, ao abrigo da sombra suficientemente escura, palavra que lhe torceria o pescoço, sem escrúpulos, como fazia às aves de criação dos camponeses, nos dias de grandes manobras. E recordava os seus dois anos de África, a maneira como tributava os árabes nos pequenos postos do Sul. E um sorriso alegre e divertido aflorou­‑lhe aos lábios à lembrança de uma expedição que custara a vida a três homens da tribo dos Ouled­‑Alane e que lhes valera, aos seus companheiros e a ele, vinte galinhas, duas ovelhas, ouro, e motivo de riso para seis meses. Os culpados nunca tinham sido descobertos, nem de resto se procurara seriamente fazê­‑lo, pois de certo modo se considerava o árabe como a presa natural do soldado. Em Paris era diferente. Não se podia pilhar amenamente, sabre à cinta e revólver em punho, longe da justiça civil, em liberdade, experimentando no coração todos os instintos do subalterno à solta num país conquistado. Tinha saudades, sem dúvida, dos seus dois anos de deserto. Era uma pena não ter podido ficar por lá! Mas a verdade é que esperara coisa melhor do regresso. E agora!… Ah, agora era o bom e o bonito, estava­‑se a ver! Passeava a língua pela boca, com um leve estalido, como se quisesse comprovar a secura do palato. A turba deslizava à sua volta, extenuada e lenta, e ele não parava de pensar: «Choldra de patifes! Todos com o bolso do colete cheio de moedas, os imbecis.» Empurrava com o ombro os que se cruzavam com ele, e assobiava árias joviais. Alguns cavalheiros atropelados olhavam para trás e resmungavam; ouvia vozes de mulher que exclamavam: «Mas que animal!» Passou diante do Vaudeville, e parou em frente do Café Américain, perguntando­‑se se não era o momento de beber a sua cerveja, atormentado que estava de sede. Antes de se decidir, viu as horas nos relógios luminosos, no meio da calçada. Eram nove e um quarto. Conhecia­‑se bem: assim que tivesse à sua frente o copo cheio de cerveja, bebê­‑lo­‑ia de um trago. Mas que faria a seguir, até às onze horas? Continuou a andar. «Vou até à Madeleine», disse para consigo, «e volto depois aqui, sem me apressar.» Ao chegar à esquina da Place de l’Opéra, cruzou­‑se com um homem novo e gordo, cuja cara se lembrava vagamente de ter visto em qualquer lado. Pôs­‑se a segui­‑lo, revolvendo as suas recordações, e repetindo a meia­‑voz: «De onde diabo conheço eu este sujeito?» Dava voltas à cabeça, sem conseguir lembrar­‑se; depois, de repente, por um singular fenómeno de memória, viu o mesmo homem menos gordo, mais novo, vestido com um uniforme de hussardo. Exclamou em voz alta: — Olha, é o Forestier! — e, alongando o passo, aproximou­‑se e bateu no ombro do viandante. O outro virou­‑se, olhou para ele, a seguir disse: 
— O que é que quer de mim, senhor? — Duroy pôs­‑se a rir: 
— Não me estás a conhecer?
— Não.
 — Georges Duroy do sexto de hussardos. 
Forestier estendeu­‑lhe as duas mãos: 
— Ah, meu velho! Como é que tu estás?
 — Muito bem e tu? 
— Oh, eu? Não muito bem; imagina tu que agora tenho um peito feito de cartão; passo os doze meses do ano a tossir, por causa de uma bronquite que apanhei em Bougival, no ano em que regressei a Paris, vão fazer agora quatro. 
— Não me digas! Mas pareces cheio de saúde. 
E Forestier, dando o braço ao seu companheiro, falou­‑lhe da sua doença, descreveu­‑lhe as consultas, as opiniões e os conselhos dos médicos, a dificuldade de cumprir as suas recomendações na sua situação. Mandavam­‑no passar o Inverno no Midi; mas como podia ele fazê­‑lo? Estava casado e era jornalista, tinha uma boa situação.
— Dirijo a política do La Vie Française. Faço o Senado no Salut, e, de vez em quando, crónicas literárias para o La Planète. Aí tens, fui abrindo caminho. 
Duroy, surpreendido, observava­‑o. Mudara muito, amadurecera muito. Tinha agora uma aparência, uma atitude, uma maneira de vestir de homem assente, seguro de si, e um ventre de homem que janta bem. Outrora, era magro, esguio e flexível, estouvado, estoura­‑vergas, ruidoso e não parava quieto. Em três anos, Paris fizera­‑o uma pessoa completamente diferente, um homem gordo e sério, com alguns cabelos brancos nas têmporas, embora não tivesse mais do que vinte e sete anos.
Forestier perguntou: — Para onde é que vais?
Duroy respondeu: — Para parte nenhuma, estou a dar um giro antes de ir para casa. 
— Muito bem, mas não queres fazer­‑me companhia até ao La Vie Française, onde tenho de ir corrigir umas provas? Depois vamos tomar uma cerveja juntos. 
— Acompanho­‑te. E puseram­‑se a caminho, dando­‑se o braço, com essa familiaridade fácil que subsiste entre companheiros de escola e camaradas de regimento.
— O que é que estás a fazer em Paris? — perguntou Forestier. 
Duroy encolheu os ombros: — Rebento de fome, e é só."
Guy Maupassant, in  Bel – Ami, Relógio d’Água Editores , pp. 9-13
Sobre o Livro

“Georges Duroy, de alcunha Bel-Ami, é um homem jovem e de belo físico. Um encontro ocasional mostra-lhe o caminho da ascensão social. Apesar da sua vulgaridade e ignorância, consegue integrar a alta sociedade apoiando-se nas amantes e no jornalismo.
Cinco mulheres vão sucessivamente iniciá-lo nos mistérios da profissão, nos segredos da vida mundana e assegurar-lhe o êxito ambicionado. Nesta sociedade parisiense, em plena expansão capitalista e colonial, a Imprensa, a Política e a Finança estão estreitamente ligadas. E as mulheres educam, aconselham e manobram na sombra.
Mas, por trás das combinações políticas e financeiras e do erotismo interesseiro, está a angústia que até um homem como Bel-Ami transporta consigo.
Bel-Ami é um dos romances mais vezes transposto para o cinema.
O primeiro filme foi feito em 1939, pelo realizador alemão Willi Forst.
Em 1947, o norte-americano Albert Lewin realizou The Private Affairs of Bel-Ami.
Em 1955, foi a vez de Louis Daquin dirigir um filme franco-austríaco sobre o romance de Guy de  Maupassant.
Finalmente, em 2011 os realizadores Declan Donnellan e Nick Ormerod rodaram um novo filme, com os actores Robert Pattinson (no papel de Georges Duroy), Uma Thurman (Madeleine Forestier), Kristin Scott Thomas (Virginie) e Christina Ricci (Clotilde)."

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