por Branquinho da Fonseca
“Não gosto de viajar.
Mas sou inspector das escolas de instrução primária e tenho obrigação de
correr constantemente todo o país. Ando no caminho da bela aventura, da
sensação nova e feliz, como um cavaleiro andante. Na verdade lembro‑ me de alguns
momentos agradáveis, de que tenho saudades, e espero ainda encontrar outros que
me deixem novas saudades. É uma instabilidade de eterna juventude, com
perspectivas e horizontes sempre novos. Mas não gosto de viajar. Talvez só
por ser uma obrigação e as obrigações não darem prazer. Entusiasmo‑me com a
beleza das paisagens, que valem como pessoas, e tive já uma grande curiosidade
pelos tipos rácicos, pelos costumes, e pela diferença de mentalidade do povo de
região para região. Num país tão pequeno, é estranhável tal diversidade.
Porém não sou etnógrafo, nem folclorista, nem estudioso de nenhum desses
aspectos e logo me desinteresso. Seja pelo que for, não gosto de viajar. Já
pensei em pedir a demissão. Mas é difícil arranjar outro emprego equivalente
a este nos vencimentos. Ganho dois mil escudos e tenho passe nos comboios,
além das ajudas de custo. Como vivo sozinho, é suficiente para as minhas
necessidades. Posso fazer algumas economias e, durante o mês de licença que o
Ministério me dá todos os anos, poderia ir ao estrangeiro. Mas não vou. Não
posso. Durante esse mês quero estar quieto, parado, preciso de estar o mais
parado possível. Acordar todas essas trinta manhãs no meu quarto! Ver durante
trinta dias seguidos a mesma rua! Ir ao mesmo café, encontrar as mesmas pessoas!… Se soubessem como é bom! Como dá uma calma interior e como as ideias
adquirem continuidade e nitidez! Para pensar bem é preciso estar quieto. Talvez
depois também cansasse, mas a Natureza exige certa monotonia. As árvores não
podem mexer‑se. E os animais só por necessidade física, de alimento ou de
clima, devem sair da sua região. Acerca disto tenho ideias claras e uma
experiência definitiva. É até, talvez, a única coisa sobre que tenho ideias
firmes e uma experiência suficiente. Mas não vou filosofar; vou contar a minha viagem à serra do Barroso. Ia fazer uma sindicância à escola primária de V…
Foi no Inverno, em Novembro, e tinha chovido muito, o que dera aos montes o ar
desolado e triste dessas ocasiões. As pedras lavadas e soltas pelos caminhos,
as barreiras desmoronadas, algumas árvores com os ramos torcidos e secos. Fui
de comboio até à cidade mais próxima, onde depois tomei uma camioneta de
carreira que me deixou, já de noite, numa aldeia cujo nome não me lembra.
Disseram‑me que havia uma hospedaria ao fundo da rua. Era uma velha casa em
ruínas. Entrei e fui ter à cozinha, uma divisão comprida e escura, ao fundo da
qual estava uma fogueira acesa. Ao pé da fogueira, uma velha sentada. Não me
senti à vontade. Estava embaraçado, sem saber o que devia fazer, quando
chegou uma senhora a procurar por mim. Era a professora, que, sabendo da minha
chegada, vinha esperar‑me. Nova mas feia. Contudo simpática e com um olhar de
inteligência que a tornava atraente. Sem a menor hesitação resolveu logo o
meu problema, como se aquilo fosse habitual. Deu ordem ao criado da taberna
para que fosse dizer ao senhor Barão que estava ali uma pessoa vinda de
Lisboa, se ele podia emprestar‑lhe amanhã de manhã um cavalo para subir a
serra. E declarou‑me:— Vai ver como este recado resolve todas as dificuldades,
não só de instalação, como de transporte. Deu‑me uma vaga explicação acerca do
Barão e começámos a falar de qualquer outra coisa. Sentámo‑nos junto da
chaminé, aquecidos e iluminados pela fogueira. Falou‑se da sindicância e da
vida da aldeia. Ela entristeceu. Mas reagiu no mesmo instante. Vi que estava
ali uma mulher forte, optimista e infeliz. Compreendi o drama daquela pobre
rapariga. Ela tinha razão, sob o seu ponto de vista pessoal tinha razão. Pensei
em não inquirir mais nada e fazer um extenso relatório a justificar e
defender a professora que, por manifesta superioridade de interesses
intelectuais, era uma pessoa inadaptável àquele meio. Entretanto veio um mau
café em grandes chávenas de chá, que não consegui beber. Mas ela bebeu‑o. E de
repente vi que não era tão verdade como eu supunha a inadaptação ao meio. O
ser humano é o animal mais adaptável, tenho de concordar… Fomos falando sobre
vários assuntos e teria passado meia hora, ou pouco mais, quando ouvimos um
automóvel. Ela levantou‑se como se ao mesmo tempo aquilo a assustasse e
exclamou que era infalível. Pouco depois, a pequena porta da cozinha abriu‑se e
do vão escuro surgiu um homem de enorme estatura, que teve de curvar‑se para
poder passar. De ombros largos, com um grande chapéu na cabeça e todo
embrulhado, até aos pés, num capote preto, disse de longe, parando, em voz
baixa: — Boa noite! Era uma figura que intimidava. Ainda novo, com pouco mais
de quarenta anos, tinha um aspecto brutal, os gestos lentos, como se tudo
parasse à sua volta durante o tempo que fosse preciso. O ar de dono de tudo.
Avançando para mim, com passos vagarosos, fitava‑me friamente. De repente mudou de expressão, como quem deixa cair uma máscara, e a rir perguntou‑me donde
eu vinha e quem era. Mas qual seria a máscara?, pensava, enquanto ele, sem
ouvir a minha resposta, continuava a rir e a falar. Começou a parecer‑me que a
primeira impressão não tinha sido justa e que o Barão era, afinal, uma pessoa
simpática. Porém, a verdade é que os outros não se sentiam à vontade ao pé
dele. Fui reparando nisto. Eu achava‑o tosco e primitivo, mas começava a tornar‑se‑me
simpático exactamente por esses aspectos. Disse‑me que ficava sendo seu
hóspede, e pôs termo às minhas evasivas declarando, num tom de gracejo seco,
que não admitia resposta : — Quem manda aqui sou eu! Surpreendi‑lhe então um
olhar duro, logo mudado numa expressão infantil e alegre, que tentei
compreender. Devia ter necessidade de convívio e vinha agarrar‑me, apanhar‑me
co‑ mo quem, enfim, encontra alguém num deserto. A sua maior alegria era ter
hóspedes em casa. E afirmou‑me que tinha de lá estar uma semana e, se quisesse,
que mandasse vir amigos e amigas. Respondi‑lhe que não podia ficar mais de dois
dias, mas ele franziu as sobrancelhas e respondeu‑me quase de gracejo: — Vai‑se
ver. Quem manda aqui sou eu! De repente compreendi que tinha caído nas mãos de
um déspota, de uma pessoa habituada a vergar os outros aos seus caprichos.
Insisti: que não me podia demorar. Respondi‑lhe num tom firme. E então ele teve
um sorriso tímido e quase ingénuo, como uma criança. Arrependi‑me e dei‑lhe a
explicação de que tinha coisas a fazer no dia seguinte de manhã e depois
teria de regressar logo para elaborar um relatório. Atirou‑me com desprezo: —
Qual relatório! E a frase e o tom feriram‑me como uma chicotada humilhante.
Pôs‑se em pé, obrigando‑me a levantar‑me também, e acrescentou: — Deixe lá
essas coisas! Desafiarem‑me para o que eu gostaria de fazer mas não posso,
desprezarem os outros as coisas que eu também quero desprezar e desprezo, mas
de que sou escravo, é a pior humi‑ lhação que me podem fazer, o maior vexame. O
Barão, porém, emendou como se tivesse lido na minha cara o que eu ia para lhe
responder: — Desculpe estes modos, estas maneiras de falar. É brincadeira…
Gosto de brincar com as coisas sérias. Mudámos prudentemente de conversa e
resolvemos sair. Começava a despertar‑me certa curiosidade a vida daquele homem
que era rico e estava escondido ali nos confins do mundo, numa aldeia da serra.
Despediu‑se da professora e, agarrando‑me pelo braço, puxou‑me para a rua.
Abriu a porta do automóvel, empurrou‑me para dentro, sentou‑se ao volante e
continuou: — Na segunda‑feira temos aí uns amigos de Coimbra e umas sócias, que
é o fim do mundo! Conhece Coimbra? Pois claro! Quem é que não conhece
Coimbra?!!! Até tive um cavalo que andou em Coimbra. Quando cheguei ao
terceiro ano da universidade compreendi que aquilo era para cavalos. Vim a
casa, meti o Melro no comboio (era um cavalo preto, uma estampa!…) e levei‑o para
Coimbra. Juntei a malta e (interrompia para comentar o mau estado da estrada:
«Isto é que são estradas!… Em os buracos estando mais jeitosos trago cá o
Governo e esfrego‑lhes aqui as trombas…») juntei a malta, fomos em procissão
até à Porta Férrea e ali, de cima do leão, gritei às massas: — Há aí alguém que
tenha dúvidas de que isto (e apontei a Universidade) é para cavalos?
Responderam todos como um trovão. «Naaaão!!!» Pois então, eu vos digo: este vai
tomar capelo. Depois levámo‑lo para o pátio da Universidade e doutorámos o
Melro. Doutorado em Direito. E de capelo e borla, borla de papel vermelho, que
era uma autêntica capa rendilhada que o cobria até meio lombo, lá foi passear
para a Baixa, entre alas de caloiros, a comer torrões de açúcar.”
Branquinho
da Fonseca, in O
Barão, Relógio D’Água Editores, Nov. 2022, pp.25-31
Sobre
a Obra:
«Emblema? Símbolo?
Mito? O Barão é tudo isso; mas antes de tudo isso, independentemente de todos
esses valores que lhe são dados pelo meio, pela raça, pelo tempo (utilizemos,
já agora, sem rebuço, a trípode do velho Taine!), é um ser concreto, que nos
parece de “carne e osso” pelo modo como a estrutura da novela o apresenta,
gradualmente o desoculta, incompletamente o ilumina; é um ser que nos perturba,
e revolta, e comove, com os seus defeitos e as suas qualidades, as suas
obsessões, os seus sonhos, a sua índole pessoal e intransmissível… Daí, a
incomparável espessura que ele tem como criatura romanesca. E, todavia, O Barão
não é apenas o Barão.» [Do Prefácio de David Mourão-Ferreira]
Sobre
o Autor:Branquinho da Fonseca nasceu em Maio de 1905 em Mortágua. Era filho do escritor
Tomás da Fonseca. Estudou Direito em Coimbra, onde colaborou com José Régio e
João Gaspar Simões na fundação da revista Presença. Escreveu contos, novelas,
romances, poesia e teatro. Foi director do Museu-Biblioteca Condes de Castro
Guimarães e criador e primeiro director das Bibliotecas Itinerantes da Fundação
Calouste Gulbenkian.
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