Insaciabilidade
por Javier Marías
“ Não se preocupem os não aficionados do futebol, que a
referência a esse desporto será somente um preâmbulo. É sabido que nele não há
paciência nem, o que é pior, mérito que se acumule. Estamos a vê‑lo uma vez
mais esta temporada: o Real Madrid ganhou a Liga dos Campeões do ano passado, e
a do anterior, e a do anterior, três seguidas. Mais ainda, ganhou quatro das
últimas cinco disputadas, façanha que nem de longe alguma outra equipa do
continente conseguiu. Hoje, no entanto, joga pobremente, está quase posto de
parte na Liga e não promete chegar longe na Liga dos Campeões (embora, como lhe
corre sempre tão bem, nunca se saiba). A claque e a imprensa estão furiosas,
desprezam o treinador e os jogadores. Segundo a minha maneira de ver, nada há
de mal se uma equipa sofre um período de crise depois de tantos triunfos. Que
mais se pode pedir? É natural que o nível não seja sempre o mesmo, para mais
após a saída do excelente treinador Zidane e do maior goleador de toda a
história do clube, Cristiano Ronaldo. O que angustia no futebol é que nada do
que foi alcançado importa, que o passado não existe ainda que muito recente,
que os maiores feitos não bastam se não tiverem continuidade imediata e não se
repetirem indefinidamente. Eu, se fosse futebolista, viveria desesperado e
atemorizado: “Domingo marquei três golos, mas se hoje não marco nenhum, esses
três não servirão de nada e serei vaiado.” O falecido Luis Aragonés expressou‑o
sem papas na língua há muito tempo: “Aqui só conta ganhar e ganhar e ganhar e
ganhar. E ganhar e ganhar e ganhar e ganhar…” E assim até ao infinito, uma
aterradora tarefa de Sísifo, cujo mito não sei já se muita gente conhece. O que
não era de esperar, no entanto, é aquilo a que poderia chamar‑se a
“futebolização” do mundo, em todos os domínios. As pessoas têm cada vez mais a
sensação de que tudo o que fazem é inútil… a não ser que o façam uma e outra
vez, que continuem a fazê‑lo. Se alguém presta um favor, por exemplo, rara é a
vez em que acontece o mesmo que antes: esse favor não se esquecia e a pessoa
entesourava uma dose de gratidão por parte do favorecido. Agora é em mais uma
armadilha que se cai. Quem fez um favor, tem de fazer também o próximo, e
outro, e o seguinte. Os precedentes contam pouco ou não contam: estão no
passado, e do passado, quem se lembra? E se alguém se lembra, é para exigir da
pessoa que esteja à altura, que torne a cumprir como se isso se tivesse
convertido numa obrigação adquirida. Já terei contado o que muitas vezes me
acontece quando me pedem uma colaboração que não me interessa nem me apetece, e
à qual acedo por simpatia ou por cortesia. É frequente que, ao fim de algum
tempo, o solicitante a que cedi volte à carga. E se a minha resposta é Não da
segunda vez, não é raro que o insistente, longe de se mostrar agradecido pela
ocasião anterior e compreender que abusou, se encha de cólera perante a minha
negativa: “Se me escreveu um texto, como se atreve a negar‑me outro? Se acedeu
da primeira vez, compete‑lhe aceder sempre.” Exagero, claro, mas é esta a
atitude de fundo. Coisa semelhante sucede em todas as actividades. O escritor
George R. R. Martin acaba de publicar um volumoso romance, aparentemente uma
“prequela” da sua famosa série. Desconheço a qualidade da sua prosa, pois nunca
li uma linha sua; mas admiro sobremaneira a sua capacidade imaginativa, após
ver pela segunda vez, seguidas, as temporadas da série A Guerra dos Tronos, em antecipação à última. Este homem completou
já uma obra ingente que, nas suas versões literária ou televisiva, proporcionou
prazer a milhões de entre nós. Numa entrevista recente, o pobre Martin queixava‑se
de que, assim que saíra o volumoso romance que requerera o seu esforço, não
paravam de lhe perguntar: “Para quando a próxima entrega das Crónicas de Gelo e Fogo?” (Que assim
deveria ter sido traduzido o seu ciclo, mais conhecido como A Guerra dos Tronos.) Muitos dos seus
leitores não lhe têm em conta o que já fez, nem lho agradecem. Consideram‑no
pouco menos do que um escravo às suas ordens, que não deveria descansar. As
suas Ligas dos Campeões já conquistadas não importam. Chegam a ter o mau gosto,
esses seus leitores despóticos, de o repreenderem pela sua gordura. Não é que
por afecto a sua saúde os preocupe: temem simplesmente ficar sem a resolução da
história no caso de Martin quinar antes de a concluir. É puro egoísmo, sem
ponta de gratidão nem de estima. Trata‑se de um facto generalizado, o caso
deste autor é somente o mais extremo, dada a repercussão planetária da sua
obra. Não se credita a ninguém o que já pagou e com juros. Ninguém pode parar e
dizer: “É já batante; e, além disso, cansei‑me.” Se tiver essa fraqueza, os
seus sucessos anteriores serão instantaneamente revogados. É o que vemos a
todos os níveis: quando alguém se demite ou é destituído de um cargo, seja o de
ministra ou de caixeira do supermercado, agradecem‑lhe sumariamente “os serviços
prestados” e quando muito recebe uma palmadinha pouco sentida nas costas.
Aquilo que fez não conta… a partir do momento em que já não continua a fazê‑lo.
Disse que o futebol e a sua insatisfação permanente contagiaram o mundo, mas
talvez tenha sido antes o capitalismo mais selvagem e demente, que pede mais e
mais e mais, e mais ganhos ano após ano até que morramos… É como parar e não
fazer nada."
3‑11-19
Javier Marías, in “Será o cozinheiro boa pessoa?”, Relógio d’Água Editores, Dezembro de 2022,
pp.13-15
Sobre o Livro
"Este livro reúne noventa e cinco artigos escritos por Javier
Marías entre 3 de Fevereiro de 2019 e 24 de Janeiro de 2021. Javier Marías
aborda com elegância, lucidez e por vezes também com exasperação alguns dos
temas mais importantes da atualidade. Critica as arremetidas do politicamente
correto contra a literatura e a liberdade de expressão, os atentados
urbanísticos em Madrid ou Barcelona e verbera atitudes políticas e a hipocrisia
tanto de partidos de esquerda como de direita. Javier Marías deixou-nos em
setembro de 2022, pelo que estes são os últimos artigos que publicou."
Sobre o Autor:
"Javier Marías nasceu em Madrid em 1951, tendo publicado romances, contos e
antologias de artigos. Foi professor na Universidade de Oxford e na Complutense
de Madrid. As suas obras foram publicadas em quarenta e seis línguas e em
cinquenta e nove países, tendo sido membro da Real Academia Española. Entre os
seus romances contam-se Los dominios del
lobo, Travesía del horizonte, El monarca del tiempo, El siglo, O Homem
Sentimental (Prémio Ennio Flaiano), Todas
as Almas (Prémio Ciudad de Barcelona), Coração
tão Branco (Prémio da Crítica, Prix l’Oeil et la Lettre, IMPAC Dublin
Literary Award), Amanhã na Batalha Pensa
em Mim (Prémio Fastenrath, Prémio Rómulo Gallegos, Prémio Femina Étranger,
Prémio Mondello di Palermo), Negras
Costas do Tempo, os três volumes de Tu
rostro mañana: 1 Fiebre y lanza (Prémio Salambó), 2 Baile y sueño, 3 Veneno y sombra y adiós, Os Enamoramentos, Assim
Começa o Mal e Berta Isla.
Publicou duas antologias de contos, Enquanto
Elas Dormem e Quando Fui Mortal. É
ainda autor de dezanove colecções de artigos e ensaios e de Vidas Escritas, narrativas biográficas
sobre alguns escritores. É também tradutor, com destaque para Tristram Shandy, de Laurence Sterne
(Premio Nacional a la Mejor Traducción, 1979). Obteve prestigiados prémios
literários na Alemanha, Espanha, Itália e Chile.
Morreu a 11 de setembro de
2022, em Madrid."
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