quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

Celebrar Eugénio de Andrade

Eugénio de Andrade por Júlio Resende

" Como alguns talvez saibam, sou um homem que nasceu e passou a infância em campos rasos onde cresce o trigo  - tenho a nostalgia do sul: a cal e as cigarras misturam-se na minha cabeça com o cheiro da resina das estevas. Quer-me até parecer que é naquelas oliveiras, naquelas figueiras, naqueles limoeiros, que os pássaros cantam com mais apuro, porque alguns dos seus cantos não têm mais sentido que celebrar a luz.  A memória  desses anos é a de uma relação perfeita do real de um corpo com a tangível verdade doutro corpo, como se a mão fosse o fiel  de uma balança  que nos seus pratos  equilibrasse a necessidade  do homem como a respiração do mundo. A mão que escreve o poema é idêntica à que cortou o feno e acariciou o focinho húmido das reses húmidas. "
Eugénio de Andrade, in A Sombra da Memória ,1993, Assírio &Alvim , p. 38
Há cem anos , a 19 de Janeiro de 1923 , na Beira Baixa, nasceu Eugénio de Andrade.   "Póvoa da Atalaia é a minha terra , fazia falta dizê-lo com o coração. Fica dito." (in A Sombra da Memória p.125)
Em 1932, muda-se para Lisboa com a mãe «figura crucial na sua vida e na sua poética. Naquela cidade, onde passará toda a adolescência, descobre a sua vocação literária e convive com alguns escritores e poetas. Publica, em 1940, Narciso, o seu primeiro volume de poemas, a que se seguem Pureza (1942) e Adolescente (1945). Destes três livros, depois de expurgados pelo autor, foram publicadas diversas composições numa antologia intitulada Primeiros Poemas, cuja primeira edição data de 1977.
Entre 1943 e 1946 Eugénio de Andrade encontra-se em Coimbra, onde estabelece relações de amizade com alguns dos maiores vultos da literatura e do pensamento portugueses da época, como Miguel Torga, Carlos de Oliveira e Eduardo Lourenço. Em 1947 torna-se funcionário público, exercendo durante os trinta e cinco anos que se seguiram as funções de inspector administrativo do Ministério da Saúde. Por razões de serviço, passa em 1950 a residir no Porto, cidade que adoptou desde então para viver e da qual é cidadão honorário."1
O Porto passa a ser a sua cidade.  É no Passeio Alegre, na Foz do Douro, que faleceu em 13 de Junho de 2005.
O rio Douro  e a foz são temas  de contemplação que desenvolve,  admiravelmente,  nesta já citada obra :
“Chega ao fim, o rio. Vem de longe só para morrer às mãos das vagas. Chega extenuado, o caminho é longo, nem sempre fácil, embora se demore muita vez a contemplar as margens, ora escarpadas, ora em socalcos verdes, entre oiro e carmim. Na foz esperam-no as gaivotas, mas sobre os seus flancos, onde o céu é mais fértil, as garças cinzentas seguem-no de perto – não sei dizer qual destas aves prefere para companhia. O que ele mais ama, sobre isso não tenho dúvidas, são aqueles álamos frios das terras de Sória, onde as suas águas são delgadas e jovens. Os álamos e a música que neles há, quando os anjos lhes acariciam as folhas, que tremem à sua aproximação. É com eles na alma, que se verga por fim o rio às águas salgadas da sua última morada.”
Eugénio de Andrade, in A Sombra da Memória ,1993, Assírio &Alvim - Porto Editora, p.149
Mas Eugénio é, por excelência, um poeta. Um poeta "com vocação e paciência: fixa, imóvel, atenta ao rumor da luz, do coração batendo ou simplesmente  das palavras , quando se juntam para acasalar. "
I
Só as tuas mãos trazem os frutos.
Só elas despem a mágoa
destes olhos, e dos choupos,
carregados de sombra e rasos de água.
 
Só elas são
estrelas penduradas nos meus dedos.
– Ó mãos da minha alma,
flores abertas aos meus segredos.
Eugénio de Andrade, in As Mãos e os Frutos (1948), Assírio &Alvim - Porto Editora, p 43
 
VIII
Foi para ti que criei as rosas.
Foi para ti que lhes dei perfume.
Para ti rasguei ribeiros
e dei às romãs a cor do lume.
 
Foi para ti que pus no céu a lua
e o verde mais verde nos pinhais.
Foi para ti que deitei no chão
um corpo aberto como os animais.  
Eugénio de Andrade, in As Mãos e os Frutos (1948), Assírio &Alvim - Porto Editora,  p 50

XXIX
Tu és a esperança, a madrugada.
Nasceste nas tardes de setembro
quando a luz é perfeita e mais doirada,
e há uma fonte crescendo no silêncio
da boca mais sombria e mais fechada.
 
Para ti criei palavras sem sentido,
inventei brumas, lagos densos,
e deixei no ar braços suspensos
ao encontro da luz que anda contigo.
 
Tu és a esperança onde deponho
meus versos que não podem ser mais nada.
Esperança minha, onde meus olhos bebem
fundo, como quem bebe a madrugada.
Eugénio de Andrade, in As Mãos e os Frutos (1948), Assírio &Alvim - Porto Editora,  p 71
 
Elegia e Destruição
 
Desse tempo em que se permanece criança
durante milhares de anos,
trouxe comigo um cheiro a resina;
trouxe também os juncos vermelhos
que ladeiam a orla do silêncio,
neste quarto, agora habitado pelo vento;
trouxe ainda um olhar húmido
onde os pássaros perpetuam o céu.
 
 
Dificilmente esqueço a rua onde encontrei
os teus olhos imensos, fascinados
pelo fulgor secreto das espadas,
a casa onde te contei, de mãos trémulas,
a parábola do pão e do vinho,
dando a cada palavra um rosto novo.
 
 
A cidade onde te amei foi decepada
e não posso abolir as sentinelas do medo.
Mas também não posso deixar de te querer
com beijos e relâmpagos,
com sonhos que tropeçam nas paredes
e se alimentam de terror e de alegria,
enquanto o tempo persiste em soluçar.
 
 
Que me quereis verdes sombras da lua
na minha cama onde adormece o frio?
Aqui estou, mais alto do que o trigo,
sangrando nas pétalas do dia
e sem receio de que aos nossos gritos
ainda chamem brisa.
Eugénio de Andrade,  in As Palavras Interditas (1951) ,  Assírio &Alvim - Porto Editora, p 31


Metamorfoses da Palavra
A palavra nasceu:
nos lábios cintila.
 
Carícia ou aroma,
mal pousa nos dedos .
 
De ramo em ramo voa,
na luz se derrama.
 
A morte não existe:
tudo é canto ou chama.
Eugénio de Andrade , in Até amanhã, 1956 , Assírio &Alvim - Porto Editora, p 49
 
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