"Nevara um pouco durante a noite e o cabelo dela gelara e era dourado e cristalino e os olhos tinham congelado, duros como seixos. Uma das botas amarelas soltara‑se e estava de pé, na neve, por baixo dela. O casaco jazia na neve, um montículo coberto de poalha branca, onde o deixara cair, e ela tinha no corpo somente um vestido branco e pendia entre os postes despidos e cinzentos das árvores invernais, a cabeça curvada e as mãos um tudo‑nada voltadas para fora como as de certas estátuas ecuménicas cuja postura nos pede que meditemos na sua história. Que meditemos nos fundos alicerces do mundo, cuja substância é feita da dor das suas criaturas. O caçador ajoelhou‑se e cravou a coronha da espingarda na neve, a seu lado, e tirou as luvas e deixou‑as cair e entrelaçou as mãos uma na outra. Pareceu‑lhe que devia rezar, mas não sabia nenhuma prece para uma ocasião assim. Vergou a cabeça. Torre de Marfim, disse. Casa de Ouro. Ficou muito tempo ali ajoelhado. Quando abriu os olhos, viu uma pequena forma meio enterrada na neve e debruçou‑se e raspou a neve com os dedos e apanhou do chão uma corrente de ouro com uma chave de aço, um anel de ouro branco. Meteu a corrente no bolso do blusão de caça. Ouvira a ventania durante a noite. Os efeitos da ventania. Um caixote do lixo a estralejar por cima dos tijolos, nas traseiras da casa. A neve a soprar lá longe, no meio da floresta, no escuro. Ergueu o rosto e fitou aqueles olhos frios e esmaltados que cintilavam, azuis, à luz fraca do inverno. Ela prendera o vestido com uma faixa vermelha, para ter a certeza de que a encontravam. Um farrapo de cor na desolação escrupulosa. Naquele dia de Natal. Naquele dia de Natal tão frio e quase sem palavras."
Cormac McCarthy, in O Passageiro, Relógio D'Água Editores, tradução de Paulo Faria, 424 pgs., Lisboa, 10.2022
"Cormac McCarthy nasceu em Rhode Island, em 1933, e estudou na Universidade do Tennessee, que deixou para ingressar na Força Aérea. Vive actualmente em Santa Fé, no sul dos Estados Unidos. Na Relógio D’Água tem publicados O Guarda do Pomar, Meridiano de Sangue, A Estrada, Este País não É para Velhos, Suttree, Belos Cavalos, Nas Trevas Exteriores, A Travessia, O Conselheiro, Filho de Deus e Cidades da Planície. De entre os prémios que recebeu, destacam-se o National Book Award, o National Book Critics Circle Award, o Pulitzer Prize e o James Tait Black Memorial Prize."
SOBRE O LIVRO:
"Dezasseis anos depois, Cormac McCarthy, vencedor do Prémio Pulitzer com A Estrada, regressa com o primeiro de dois novos livros.
O Passageiro narra a história de um mergulhador de resgate, assombrado pela perda, receoso das águas mais profundas, e que, perseguido por uma conspiração que não compreende, anseia por uma morte que não consegue conciliar com Deus.
O projecto ficará concluído com Stella Maris, livro que será igualmente publicado pela Relógio D’Água, em tradução de Paulo Faria."
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