Incipit
por George Steiner
"Já não temos
começos. Incipit: a orgulhosa palavra latina que designa o início sobrevive no poeirento
vocábulo inglês inception. O escriba da Idade Média assinala o início de uma
linha, o novo capítulo, por meio de uma capital iluminada. No seu turbilhão
dourado ou carmim, o iluminista de manuscritos dispõe animais heráldicos,
dragões matinais, cantores e profetas. A inicial, significando a palavra o
começo e o primado, é uma fanfarra. Proclama a máxima de
Platão, que nada tem de evidente: a origem é a excelência maior de todas as
coisas, naturais e humanas. Hoje, entre as inclinações ocidentais — observe-se
a presença muda da luz matutina deste mundo —, os reflexos, as inflexões da
percepção são os da tarde, do crepúsculo. Estou a generalizar. (O meu argumento
é, no seu todo, vulnerável e expõe-se ao risco daquilo a que Kierkegaard
chamava as «feridas da negatividade».)
A cultura
ocidental conheceu outrora sentimentos de fim, o fascínio pelo ocaso. Os
testemunhos da filosofia, as artes, os historiadores da sensibilidade fazem-se
eco dos «tempos de encerramento dos jardins do Ocidente» ao longo das crises da
ordem imperial romana, dos medos apocalípticos à volta do Ano Mil, do rasto da Peste
Negra e da Guerra dos Trinta Anos. Desde sempre, os sinais da decomposição, do
Outono e da luz que declina acompanharam, nos homens e nas mulheres, a consciência
da decrepitude física e da nossa mortalidade comum. Já antes de Montaigne,
houve moralistas para sustentarem que o recém-nascido é velho o bastante para
morrer. Na construção metafísica mais segura de si, na obra de arte mais
afirmativa, há sempre um memento mori,
um esforço, implícito ou explícito, para conter a fuga do tempo fatal, a entropia
do ser vivo sob todas as suas formas. É a esse combate que o discurso
filosófico e a geração da arte devem a tensão que os inspira, a crispação
irresoluta que conta entre as suas modalidades formais com a lógica e a beleza.
«O grande Pã morreu» é um grito que assombra até essas sociedades às quais associamos,
talvez demasiado convencionalmente, uma atitude optimista.
Na atmosfera espiritual deste fim de século,
há todavia, segundo creio, um cansaço fundamental. A cronometria íntima, os
contratos com o tempo, que em tão larga medida determinam a nossa consciência,
indicam o fim da tarde sob formas ontológicas: que se referem à essência, ao
tecido do ser. Chegámos tarde. Ou temos pelo menos a impressão de ter chegado
tarde. A mesa foi levantada. «Vamos fechar, minhas senhoras e meus senhores,
vamos fechar». Há no ar como que um perfume de «adeuses». Estas apreensões são
ainda mais impressivas pelo facto de contrariarem o aumento da duração e da
esperança da vida individual nas economias ocidentais. E, contudo, as sombras
crescem. Dir-se-ia que nos inclinamos para a terra e para a noite, como
plantas.
A nossa natureza é sedenta de explicação, de
causalidade. Queremos saber: Porquê? Que hipótese conceber, capaz de elucidar
uma fenomenologia, uma estrutura da experiência vivida tão difusa, tão múltipla
nas suas expressões como a daquilo que é «terminal»? Interrogações como esta
exigirão uma resposta séria, ou não se prestarão mais que a palavreados vãos?
Não sei ao certo.
Por mais
longe que procuremos na história, a inumanidade é permanente. Não houve
utopias, nem comunidades de justiça ou de perdão. As inquietações que são hoje
as nossas — as violências na rua, a fome no Terceiro Mundo, as regressões sob a
forma de conflitos étnicos bárbaros e os riscos de pandemias — têm de ser
situadas contra o pano de fundo de um momento absolutamente
excepcional. A traço grosso, desde Waterloo até aos massacres
dos anos de 1915-1916 na Frente Ocidental, a burguesia europeia conheceu uma
época privilegiada, um armistício com a história. Apoiando-se na exploração da
mão-de-obra industrial, nas metrópoles, e no regime colonial, no exterior, os
europeus conheceram um século de progresso, de larguezas liberais, de esperança
razoável. É nos clarões póstumos, e sem dúvida idealizados, deste calendário
excepcional — recorde-se a comparação persistente da época anterior a Agosto de
1914 com um «longo Verão» —, que vivemos o nosso actual mal-estar.
Todavia, ainda que descontemos a parte da
nostalgia selectiva e da ilusão, a verdade não deixa de o ser: para toda a
Europa e para a Rússia, este último século tornou-se um período infernal. Os
historiadores calculam em mais de setenta milhões de mortos o número dos
homens, das mulheres e das crianças vítimas da guerra, da fome, das
deportações, dos massacres e das infecções políticas entre Agosto de 1914 e a
«limpeza étnica» dos Balcãs. Existiram no passado episódios atrozes de peste,
de fome e de carnificina. A derrocada da humanidade no século XX comporta, no
entanto, enigmas peculiares. Não é obra nem de cavaleiros das estepes nem de bárbaros
que se atropelam às portas das cidades. O nazismo, o fascismo, o estalinismo (ainda
que neste último caso as coisas sejam mais opacas) nasceram do interior, do
contexto, do teatro e dos instrumentos de administração social dos lugares
cimeiros da civilização, da educação, do progresso científico, bem como do
humanismo cristão e do humanismo das Luzes.
Abster-me-ei
de entrar nos debates intermináveis, e de certo modo degradantes, em torno da
unicidade da Shoah («holocausto» é um termo técnico grego, um termo nobre que
designa o sacrifício religioso, e não um termo que signifique apropriadamente uma
loucura controlada e um «vento de treva»). Dir-se-ia contudo que o extermínio
pelos nazis da comunidade dos judeus da Europa é uma «singularidade», não tanto
pela sua dimensão — o estalinismo fez um número infinitamente maior de mortes —
como pelas suas motivações. Uma categoria inteira de seres humanos, incluindo
as crianças, foi então declarada culpada
de ser. O seu único crime era existir e pretender viver.
A catástrofe que varreu a civilização europeia
e eslava foi singular num outro sentido. Aniquilou progressos anteriores. Os
próprios ironistas das Luzes (Voltaire) haviam predito com segurança a abolição
duradoura da tortura judicial na Europa. Tinham decretado impensável um
regresso generalizado à censura, aos autos-de-fé, para já não falarmos da
liquidação dos hereges ou dos dissidentes. Para o liberalismo e para o
positivismo científico do século XIX, era natural esperar que o desenvolvimento
da escolarização, do saber científico e técnico e dos seus resultados, da livre
circulação e dos contactos entre comunidades, se saldasse por um
aperfeiçoamento regular da civilidade, da tolerância política e das práticas
económicas tanto públicas como privadas. Os seus axiomas de esperança
reflectida revelaram-se, uns atrás dos outros, falsos. A educação não só se
mostrou incapaz de tornar a sensibilidade e o saber resistentes à «desrazão»
assassina, como se passou qualquer coisa de mais desconcertante ainda: o refinamento
intelectual, o virtuosismo e o gosto artísticos, a eminência científica
colaboram de bom grado e activamente com os imperativos totalitários ou, no
melhor dos casos, permanecem indiferentes ao sadismo circundante. Os concertos
esplêndidos, as exposições dos grandes museus, a publicação de livros eruditos,
o aprofundamento das investigações universitárias, tanto nas ciências como nas
humanidades, florescem nas imediações dos campos da morte. A competência
tecnocrática responderá ao apelo do inumano ou permanecerá neutra. O ícone do
nosso tempo é a preservação de uma árvore da predilecção de Goethe no limiar de
um campo de concentração.
Ainda não
começámos a avaliar deveras os danos que os acontecimentos sobrevindos a partir
de 1914 infligiram ao homem — ao homem enquanto espécie que atribui a si
própria o qualificativo de sapiens.
Ainda não chegámos a apreender a coexistência no tempo e no espaço — essa
coexistência acentuada pela retransmissão imediata através da palavra e da imagem
nos grandes meios de comunicação de massa mundiais — do supérfluo ocidental e
da fome, da privação e da mortalidade infantil que actualmente governam três
quintas partes da humanidade. Existe uma dinâmica da demência esclarecida na
nossa maneira de desperdiçar o que resta dos recursos naturais, da fauna e da
flora do mundo. A garganta Sul do Evereste é um depósito de lixo. Quarenta anos
depois de Auschwitz, os Khmers vermelhos enterram vivos cerca de cem mil
inocentes. O resto do mundo, que se encontra perfeitamente informado, nada faz.
As novas armas saídas das nossas fábricas chegam sem perder tempo aos campos da
carnificina.
Uma vez
mais: a violência, a opressão, a sujeição económica e a irracionalidade social
prosperaram de modo endémico na história — na das tribos como na das
metrópoles. Mas, dada a extensão dos massacres, o contraste insensato entre a
riqueza disponível e a miséria efectiva, a probabilidade de as armas
termo-nucleares e bacteriológicas acabarem deveras com o Homem ou com o seu
meio, a verdade é que o último século nos proporcionou novas razões de
desespero. Deixou entrever claramente a possibilidade de uma inversão de marcha
da evolução, de uma marcha atrás sistemática a caminho da bestialização. É o
que faz de A Metamorfose de Kafka a
fábula-chave da modernidade, ou o que, apesar do pragmatismo anglo-saxónico,
torna plausíveis as célebres palavras de Albert Camus: «Só há um problema
filosófico realmente sério: o suicídio».
Aquilo que gostaria de considerar com
brevidade é, por assim dizer, o impacto sobre a gramática destes tempos
sombrios. Por gramática, entendo aqui a organização articulada da percepção, da
reflexão e da experiência, a estrutura nervosa da consciência quando esta
comunica consigo própria e com os outros. Pressinto (mas trata-se de um domínio
quase inteiramente conjectural) que o futuro é um tempo que apareceu
relativamente tarde na fala humana. Talvez se tenha formado a partir do fim da
última era glaciar, ao mesmo tempo que os «futuros» engendrados pelo
armazenamento de víveres, pelo fabrico e
pela conservação de utensílios
para além das necessidades imediatas, bem como pela descoberta muito gradual
dos animais e da agricultura. Numa
espécie de registo ”meta” ou pré-linguístico, dir-se-ia que os animais têm
consciência do “presente” e que , segundo podemos imaginar, possuem uma certa
capacidade de rememoração. O futuro, a faculdade de evocar aquilo que pode passar-se no dia seguinte ao do nosso funeral
ou no espaço estrelar dentro de um milhão de anos, parece ser próprio do homo sapiens. O mesmo
acontece com o conjuntivo e com os modos contra-factuais, que, de certa
maneira, se aproximam dos tempos futuros. Tanto quanto podemos concebê-lo , só
o homem dispõe de meios que lhe permitem transformar o seu mundo através de
cláusulas condicionais, formular frases
do seguinte tipo: « Se César não tivesse
ido ao Capitólio nesse dia…». Parece-me que esta “gramatologia” fantástica, formalmente incomensurável, dos futuros
verbais, dos conjuntivos e dos optativos
se revelou indispensável à sobrevivência , à evolução do “ animal dotado
de linguagem” frente ao escândalo e à incompreensibilidade da morte individual.
Num sentido muito real, qualquer uso do
verbo “ser” no futuro é uma negação , por limitação que seja, da mortalidade, do mesmo modo que qualquer
uso do “se”, de uma frase no
condicional, exprime a rejeição do curso bruto e inevitável das coisas, do
despotismo dos factos. Ao descreverem círculos em campos de força semântica
complexos em torno de um centro ou de um núcleo de potencialidades escondido, o
“será” ou o “se” dão palavras de passe da esperança.
A esperança e o medo são ficções supremas que extraem a sua força da sintaxe. São tão inseparáveis uma da outra como da gramática. A esperança contém um medo de não-consumação. O medo tem em si um grão de esperança, o pressentimento de poder superado. É o estatuto da esperança que é hoje problemático.
(…) O século XX lançou a dúvida sobre os garantes teológicos , filosóficos e político-materiais da esperança. Põe em questão a razão de ser e a credibilidade dos tempos do futuro. Torna compreensíveis as palavras de Franz Kafka: « A esperança é abundante , mas não é para nós». "
George Steiner, in Gramáticas da Criação, Relógio D’Água Editores, 2002 , pp.11-17, 19
George Steiner |
Sobre o Autor e o Livro
"George Steiner inicia Gramáticas da Criação, a sua obra mais radical, com a frase «Já não temos começos». Este livro, pela exploração exaustiva da noção de criação no pensamento ocidental, na literatura, na religião e na história, pode ser considerado um opus magnum. George Steiner reflecte sobre as diferentes maneiras através das quais falamos de começos, sobre o «cansaço fundamental» que atravessa o nosso espírito de fim de milénio e sobre a gramática em mutação das discussões sobre o fim da cultura e da arte ocidentais.
Com o estilo habitual, Steiner analisa as forças que orientam o espírito humano e a nossa percepção das sombras que se estendem sobre a civilização ocidental.
George Steiner morreu aos 90 anos na sua casa de Cambridge, Inglaterra. Nascido em Paris, em Abril de 1929, no seio de uma família judia, George Steiner, que gostava de se pensar acima de tudo como professor, morreu a 3 de Fevereiro de 2020, três dias após a consumação do Brexit, que via como uma séria ameaça à Inglaterra, e 75 anos depois da libertação de Auschwitz, uma questão que sempre o acompanhou, .
George Steiner, tido como um dos mais importantes críticos literários das últimas décadas - a par de Harold Bloom - dedicou parte da sua vida ao ensino em universidades como Princeton, Yale, Nova Iorque, Cambridge e Genéve. Permanece como um dos mais conhecidos e conhecedores críticos literários do século XX e, também, do próprio século XXI. No entanto, o seu trabalho não se limita à crítica, mas também ao próprio estudo da sociedade e da literatura com as ferramentas que as suas leituras lhe proporcionaram. A sua reputação firmava-se, assim, como um consolidado professor académico e como um membro notável da academia europeia. Tal perceber-se-ia quando foi nomeado professor emérito em Génova, mas também membro honorário do Balliol College, de Oxford.
A carreira académica fomentava-o a redigir ensaios e, nessa sequência, a efetuar críticas literárias – mais de duzentas foram aquelas que escreveu para o “The New Yorker”. A Universidade de Chicago foi a mais beneficiada, assim como os jornais “The Times” e “The Guardian”.
George Steiner era membro do Churchill College em Cambridge. Recebeu vários prémios pelas suas obras, nomeadamente os das Fundações Fulbright e Guggenheim, o Prémio Morton Dauwen Zabel da Academia Americana de Artes e Letras e o Prémio Truman Capote. Entre os seus livros estão: No Castelo do Barba Azul, Antígonas, Errata: Revisões de Uma Vida, Depois de Babel, Paixão Intacta, Nostalgia do Absoluto e Os Logocratas."
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