Portalegre , 26 de Janeiro de 1951.
"Muitas vezes cito o nome de Deus , mas não sei de que Deus falo. A verdade é que nem sei, hoje, se creio na existência dum Deus-Pessoa. Desde que me ponha a pensar, tenho por impossível, ou não credível, essa existência. ( Que maravilha , haver um Deus pessoal em quem se pudesse confiar , para quem se pudesse apelar como recurso primeiro e supremo e a quem , depois da morte do corpo, se unisse o nosso espírito!) Tudo que em mim pensa - recusa essa maravilhosa hipótese. Mas o que em mim é instintivo, profundo , obscuro, ( ou , porventura, simplesmente primitivo ou atávico) persiste em crer no que as minhas ideias repelem. Não posso deixar de me lembrar de Deus. Ele acompanha-me até nos longos prazos em que vivo esquecido de Ele. Não posso deixar de falar de Ele desde que me refira ao que , no passado ou no futuro, sinto muito ligado ao meu destino.
Será mero efeito duma educação e convivência muito religiosas? Será o «
instinto de luz rompendo a treva»1, mas nada não senão isso? ou uma certeza do ser profundo, - a este mesmo concedida pelo mesmo Deus? Que fácil , me parece, deveria tornar-se a santidade, a quem tem a certeza simples e absoluta! Quase me custa compreender que não sejam santos todos que a têm . (...)"
José Régio, in Páginas do Diário Íntimo, Introdução de Eugénio Lisboa, Círculo de Leitores, p180
1- « Um instinto de luz , rompendo a treva», verso do soneto «Nocturno», de Antero de Quental.
Cristo
Quando eu nasci , Senhor!, já tu lá estavas,
Crucificado, lívido, esquecido.
Não respondeste , pois, ao meu gemido,
Que há muito tempo já que não falavas...
Redemoinhavam , longe, as turbas bravas,
Alevantando ao ar fumo e alarido.
E a tua benta Cruz de Deus vencido,
Que eu erguê-la em minhas mãos escravas!
A turba veio então, seguiu-me os rastros;
E riu-se , e eu nem sequer fui açoitado,
E dos braços da Cruz fizeram mastros...
Senhor! eis-me vencido e tolerado:
Resta-me abrir os braços a teu lado,
E apodrecer contigo à luz dos astros!.
José Régio, in Poemas de Deus e do Diabo, Portugália Editora, 1969
Nota de LP - Poemas de Deus e do Diabo, foi o primeiro livro de versos de José Régio , publicado em 1925.
Em 1969, este poeta maior da Literatura Portuguesa escreveu um novo posfácio a este livro, que , numa prosa límpida e de excelência, se debruça sobre a obra e o seu tempo e do qual extraímos o seguinte : "Andava o autor em Coimbra quando o publicou. Era adolescente quando escreveu a maior parte das poesias que o compõem. À sua custa o publicou, ( ou à custa de seus pais) e por ai o espalhou aliás bem mal. Inexperiente como era, nem sequer chegou a fazer contas claras com as livrarias que, possivelmente, venderam alguns exemplares.".
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