por Vitorino Nemésio
Noctium phantasmata ne polluantur corpora.
“Estou casado há meses, na Ilha (conta John Derosa, súbdito norte-americano),
com um corpo feminino que se compõe da maré cheia, das nuvens algodoadas, dos
bicos dos penedos, e desta aragem carregada de sal que me visita no torreão da
Ponta Negra e faz tremer as folhinhas amargas e verdoengas dos salgueiros. É
Minha Mulher a Solidão.
Procuro em vão, no fundo do meu saco de aventuras, farrapos de experiência que
se assemelhem a isto. Nem Kate, cujos ombros olímpicos me levantavam meia jarda
inglesa acima da dobra do lençol. Este ser de nada é mais bravo. Vera, a
italiana, dava-me beijos preparados com uma pastilha de fruta que me deixavam
sem forças e de meninges a latejar. Mas de manhã, quando abro a porta para o
caminho, o mar envia-me um pique mais doce e bravio. E desisto de comparações
simplesmente idiotas.
Isto deve ser uma pontinha de febre enxertada num certo esgotamento dos meus
trinta anos excessivos, e já me lembrei que, tomando brometos, talvez esta
espécie de mulher marinha se safe, como se eu fosse um corpo aberto. O Prof.
Sousa Júnior, aqui retirado há anos, e que além de médico eminente é um coração
de ouro e grande cavaqueador, falou-me de sífilis hereditária e deu-me
calomelanos. Melhorei um pouco, mas não... Isto não vai com drogas. Asseguro
que estou casado com uma mulher de sal e que vai dar-se aqui uma coisa tremenda
que fará gemer os prelos!
Trata-se, pelo menos, de uma ilusão singular. Esta noite sonhei que a Solidão
deixava de ter aquele corpo quimérico e feito de linhas de limite, para tomar
as formas aproximadas de Nanette. E acordei a chorar como uma criança:
– Minha Mulher a Solidão é Nanette!
E, ainda, por uma pegaça de ritmo:
– Nanette é Minha Mulher a Solidão!
Como foi? Não sei bem. Parece que eu deixara Nanette num país esquisito e
inabordável: o Arquipélago dos Picapaus. O nome era devido à configuração dos
habitantes dessas ilhas: tipos ferozes, gargaludos, providos de narigueiras que
farejam tudo de alto a baixo.
Nanette, que eu levara ali à falsa fé, sob um pretexto de regata, não queria
desembarcar no único ancoradoiro da Picapau Grande, cortado entre falésias
mosqueadas de líquenes cor de fogo. Eu, verde de perfídia, disse-lhe:
– É só por um dia, meu amor! E ficas muitíssimo bem entregue... Vá, minha
filha! Ponha aqui o seu pezinho no primeiro degrau do cais...
O chefe dos Picapaus dissera-me ao ouvido que no arquipélago se desenhava uma
tendência evolutiva nos caracteres antropológicos da escassa população. Os
narizes pencudos, de alto faro, tinham provocado afinal uma epidemia terrível
que dizimava em massa as tabas: a rinite picapaual.
Além disso, um vento misterioso, soprado dos seios do Pacifico (o Arquipélago
dos Picapaus está mais ou menos na latitude do Golfo da Califórnia, entre 25° e
30° de latitude Norte), apanhara a população de surpresa nas suas tarefas
habituais – a picagem do pau de rolo – e cortara cerce os pescoços de mil e
quinhentos cidadãos. Se eu quisesse, mediante um cheque de cem mil dólares,
ele, führer natural do Arquipélago, receberia Nanette em depósito durante dois
ou três anos e fá-la-ia conceber de um ou dois picapaus mais decentes.
Animado pelo secreto desejo de enriquecer e encobrindo a própria vileza com
reservas mentais de eugenésia, fechei a transacção. Fomos ao Banco de meu primo
James Derosa e recebi metade do estipulado. Preferi o esterlino.
A outra metade ser-me-ia entregue quando me restituissem Nanette com um quinto
dos picapauzinhos humanizados que ela houvesse, a bordo de um navio do
contrabando do álcool tripulado por marujos da confiança de Al Capone.
Consegui enfim vencer as últimas resistências de Nanette. Ela era romanesca, de
uma docilidade de cadelinha, e confiava em mim como as pombas palonças que, na
Praça de S. Marcos, em Veneza e antes de Tito estar às portas de Trieste,
vinham comer milho americano disposto grão a grão nos meus ombros enchumaçados,
sob a forma patriótica por que se agrupam as estrelas na bandeira dos Estados
Unidos.
Comecei por dizer-lhe que precisava estudar os costumes dos Picapaus para
esclarecer um ponto controvertido da história do Canadá, minha especialidade.
E creio que lhe falei vagamente em hibridismo e nas ervilhas lisas e crespas
das experiências de Mendel.
Ela, que copiava com tanto amor todos os meus verbetes, desembarcou carregada
de tiras de papel de costaneira e com uma grande caneta de uma marca que oculto
enquanto me não derem mil dólares para a revelar aqui. Eu ia dar um bordejo a
outra ilha e dali a seis horas voltava. Escusado é dizer que não voltei...
Não posso precisar todos os pormenores do sonho, mas foi horrível! Os Picapaus
hospedaram Nanette numa casa abjecta, onde mulheres de baixa esfera a cobriram
de chufas horrendas e a untaram de um creme afrodisíaco.
Nanette ainda tentou resistir às megeras a pulso – aquele seu pulso fino e
endurecido a transportar os nossos móveis, a pegar nos filhos alheios e a –
encerar o meu escritório. Não pôde. De cabeça baixa, a testa afogada na mecha
de cabelo que às vezes desfazia e descompunha para me dar a impressão da Mãe no
Manicómio (filme que me aterrou), chorava em fio e tinha o queixo marcado pelas
unhadas dos picapaus. Algumas lágrimas me caíam também, feitas pedras de gelo;
outras iluminavam o chão do cais do regresso, como carvões espalhados de uma
braseira honesta. Quando acudia à pobre Nanette, acordei. Eram cinco horas da
madrugada. Agora, na Ponta Negra, amanhece mais cedo; entra na minha alcova uma luz mortiça e creme e o coro dos melros pretos de bico amarelo dos faiais.
Como a casa onde moro é escaiolada a vermelho, parecia-me estar numa das
falésias do ancoradoiro da Picapau Grande, toda mosqueada a fogo e tinida dos
dólares do resgate.
Esfreguei os olhos e atirei com a dobra do lençol. Cá fora o mar desenrolava-se
azul, sem uma ruga. A luz do farolim da Ponta do Cavalo ainda pulsava a
distância. Cantava um galo: respondia outro – e mais nenhum.
Eu sei que há uma ligação secreta entre a fauna torpe e absurda que nos povoa os sonhos e o fundo inconfessável que levamos connosco até à cova. Talvez eu deixasse Nanette nalguma casa suspeita! Talvez eu esteja casado com Minha Mulher a Solidão..."
Vitorino Nemésio, in O Mistério do Paço do Milhafre, Livraria Bertrand , Lisboa
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