por Rubem Braga
"Debruçado cá em cima, no 13.° andar, fiquei olhando a porta do edifício à espera de que surgisse o seu vulto lá em baixo.
Eu a levara até o elevador, ao mesmo tempo aflito para que ela partisse e triste com a sua partida. Nossa conversa fora amarga. Quando lhe abri a porta do elevador esbocei um gesto de carinho na despedida, mas, como eu previra, ela resistiu. Pela abertura da porta vi a sua cabeça de perfil, séria, descer, sumir.
Agora sentia necessidade de vê-la sair do edifício, mas o elevador deve ter parado no caminho, porque demorou um pouco a surgir o seu vulto rápido. Desceu a escada fez uma pequena volta para evitar uma poça de água, caminhou até a esquina, atravessou a rua. Vi-a ainda um instante andando pela calçada da transversal, diante do café; e desapareceu, sem olhar para trás.
“Valente menina!” — foi o que murmurei ao acaso lembrando um verso antigo de Vinicius de Moraes; e no mesmo instante lembrei-me também de uma frase ocasional de Pablo Neruda, num domingo em que fui visitá-lo na sua casa de Isla Negra, no Chile. “Que valientes son las chilenas!” dissera ele, apontando uma mulher que entrava no mar ali em frente, na manhã nublada; e explicara que estivera andando pela praia e apenas molhara os pés na espuma: a água estava gelada, de cortar.
“Valente menina!” Lá em baixo, na rua, era tocante o seu pequeno vulto, reduzido pela projeção vertical. Iria com os olhos húmidos ou sentiria apenas a alma vazia? “Valente menina!” Como a chilena que enfrentava o mar, em Isla Negra, ela também enfrentava a solidão. E eu ficava com a minha, parado, burro, triste, vendo-a partir por minha culpa.
Deitei-me na rede, sentindo dor de cabeça e um certo desgosto por mim mesmo. Eu poderia ser pai dessa moça — e pergunto- me o que sentiria, como pai, se soubesse de uma aventura sua, como essa, com um homem de minha idade. Tolice! Os pais nunca sabem nada, e quando sabem não compreendem; estão perto e longe demais para entender. Ele, esse pai de quem ela falava tanto, não acreditaria se a visse entrar pela primeira vez em minha casa, como entrou, com a bolsa a tiracolo, o passo leve e o riso nervoso. “Como pensava que eu fosse?” Lembro-me de que fiquei olhando, meio divertido, meio assustado, aquela mocetona loura e ágil que só falava olhando-me nos olhos, e me fez as confissões mais íntimas e graves entremeadas de mentiras pueris — sempre me olhando nos olhos. Disse-me que a metade das coisas que me contara pelo telefone era pura invenção — e logo inventou outras. Senti que as mentiras eram um jeito enviesado que ela tinha de se contar, um meio de dar um pouco de lógica às suas verdades confusas.
A ternura e o tremor de seu duro corpo juvenil, o riso, a insolência alegre com que invadiu a minha casa e a minha vida, e as previsíveis crises de pranto — tudo me perturbou um pouco, mas reagi. Terei sido grosseiro ou mesquinho, terei deixado a sua pequena alma trémula mais pobre e mais só?
Faço-me estas perguntas, e ao mesmo tempo sinto-me ridículo em fazê-las. Essa moça tem a vida pela frente, e um dia se lembrará de nossa história como de uma anedota engraçada de sua própria vida, e talvez a conte a outro homem olhando-o nos olhos, passando a mão pelos seus cabelos, às vezes rindo — e talvez ele suspeite de que seja tudo mentira."
Rubem Braga, in Crónicas.
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