Há livros escritos para evitar espaços
vazios nas estantes.
Carlos Drummond
de Andrade
« A literatura tem
grandes poderes e grandes fastios. Não vou enumerar aqui todos os seus poderes
nem todos os seus fastios. Estaríamos aqui até chegarem aí os chineses.
Um dos seus mais
admiráveis, estimáveis e quase nunca alardeados poderes é o de, mais do que
tornar o leitor um admirador do escritor, ser capaz de fazer dele um amigo. Há
escritores de quem ficamos gratos amigos, depois de os lermos, mesmo sem os
termos pessoalmente conhecido, mesmo não tendo vivido no mesmo século que eles.
Para dar só alguns exemplos, repito: só alguns exemplos, Camões, o Padre
António Vieira, Garrett, Camilo, Eça, Pessoa, Régio (há meninos que, para
efeito curricular académico, gostam de definir a presença, suprimindo Régio e dando como suas balizas Nemésio e
Torga, o que, além de ser estúpida afronta, é, eruditamente falando, um
ciclópico disparate, porque Nemésio e Torga pouco tiveram que ver com a presença. Mas, ocultar Régio afaga o ego
de certos docentes que, fazendo também versos, desconhecem a mais elementar
arte poética, e os candidatos a docentes sabem bem para que lado o vento sopra),
Domingos Monteiro, Rodrigues Miguéis, Jorge de Sena, Sophia (a sua poesia, não
ela), Montaigne, Voltaire, Vauvenargues, Stendhal, Baudelaire, Gide, Roger
Martin du Gard, Edgar Poe, Mark Twain, Dickens, Charlotte Brontë, Tolstoi, Tcheckov,
Turguenev e outros. Repito que falo de amizades e não de admirações: há
escritores que admiramos mas que não consideramos necessariamente nossos
amigos. Seja como for, quer haja só admiração, quer haja também amizade, a
literatura ajuda-nos a viver, protege-nos e torna-nos a vida viável, mais rica
e aprazível.
Dizia o ficcionista
americano Charles Bukowski que, sem a literatura, a vida seria um inferno. Isto
é bem verdade, mas a literatura que impede que a nossa vida se torne num
inferno é só uma certa literatura. Há, julgo eu, mais duas espécies de
literatura: aquela que nos deixa completamente indiferentes e que, quando a
lemos, não altera nada dentro de nós, e aquela que torna a nossa vida num
inferno. A primeira, a que nos deixa exactamente como éramos antes de a lermos,
é aquela que Carlos Drummond de Andrade dizia só servir “para evitar espaços
vazios na estante”. É uma literatura constituída por livros que não nos
incomodam, mas também nos não exaltam, que não nos arreliam mas também não nos
modificam. Digamos que são livros neutros, assexuados, desnecessários, mas não
necessariamente malignos.
Porém, há outra
categoria de literatura, a dos livros que fazem da nossa vida um inferno, que
nos fazem mau sangue e nos produzem enxaquecas intratáveis. Livros que
interferem com o normal funcionamento do nosso organismo e com a nossa saúde
mental. Infelizmente, a nossa literatura portuguesa contemporânea, com a bênção
de tantas das nossas vestais universitárias & outras, abunda nesta espécie
de literatura infernal. Ainda há pouco, tive ocasião de identificar uma dessas
espécies – para o caso, um romance – cujo contacto me abalou a saúde para
sempre. Para estes malfeitores devia congeminar-se legislação adequada. Que
diabo, um crime é um crime!
A única vantagem destes
livros sulfurosos é esta: se duas pessoas que se encontram pela primeira vez
verificam que ambos acham infernal um mesmo livro, há grande probabilidade de
essas duas pessoas se tornarem grandes amigas para o resto dos seus dias.
Inversamente, como observava o maravilhoso P. G. Wodehouse, “não há base mais
segura para uma bonita amizade do que um gosto mútuo na literatura.” Por outras
palavras, o inferno une mas o céu também.
Seja como for, a
literatura tem admiráveis poderes: abre-nos mundos novos, é, como dizia Kafka,
“uma expedição em direcção à verdade”, consola-nos, desafia-nos, provoca-nos,
ensina-nos, obriga-nos a desaprendermos conceitos falsos mas muito enraizados,
ilumina as dificuldades com que, na vida, deparamos, e enriquece-nos das
maneiras mais diversas.
Talvez possamos resumir
os poderes benévolos da literatura, por estas palavras singelas e sábias do
filósofo, linguista e ensaísta literário búlgaro, radicado em Paris, Tzvetan
Todorov: “Hoje, se me pergunto por que amo a literatura, a resposta que me vem
espontaneamente à cabeça é porque ela me ajuda a viver”.»
Eugénio
Lisboa, 07.07.2022
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