terça-feira, 3 de maio de 2022

O património cultural é vida

 UMA VIAGEM MÁGICA
«O “Guia de Portugal” constitui uma obra fundamental, escrita sob o impulso de Raul Proença, a partir de 1924, reeditada e completada na sua versão original pela Fundação Gulbenkian, graças a Santana Dionísio com o grafismo Raul Lino. O país descrito é muito diferente do atual, mas a colaboração de personalidades marcantes da cultura portuguesa faz dos seis volumes, divididos em oito tomos, um precioso instrumento para a compreensão das raízes portuguesas. Jaime Cortesão, Miguel Torga, Jorge Dias, Aquilino Ribeiro, Reinaldo dos Santos, Teixeira de Pascoais, Vitorino Nemésio, Ferreira de Castro, Egas Moniz, Rodrigues Miguéis, Afonso Lopes Vieira e António Sérgio são os autores de textos essenciais que mantêm atualidade. E Proença cita Unamuno; “estas excursões não são só um consolo, um descanso e um ensinamento; são, além disso e porventura sobretudo, um dos melhores meios para encontrar apego e amor à pátria”.
Se refiro o “Guia de Portugal” como pequeno monumento pátrio, é para salientar a importância do conhecimento e da compreensão do património cultural, como realidade aberta e viva. Quando lemos a “Viagem a Portugal” de José Saramago, compreendemos como esse percurso tem subjacente o exemplo deixado por Raul Proença. “Ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já”. Eis o que está em causa. Se fomos mundo afora, temos de conhecer o que temos dentro. E quando hoje se exige um esforço sério e determinado para a recuperação económica – num tempo em que o trabalho cultural foi seriamente afetado pela pandemia, como pela crise financeira, urge delinear uma ação capaz de ligar os objetivos de desenvolvimento sustentável e de recuperação do atraso. A reforma que se nos exige é assim educativa, profissional, científica, cultural e artística. Não falamos de medidas avulsas ou de uma visão centrada no consumismo e no curto prazo. A qualidade na aprendizagem, a exigência e o rigor são mais importantes que nunca. Só poderemos recuperar e avançar se cuidarmos de adequar os objetivos e os meios. E, na introdução histórica, ao “Guia”, António Sérgio salienta a necessidade de conhecer melhor a história, de impulsionar os estudos científicos e de favorecer a fixação e o investimento reprodutivo, reformando o organismo da produção.
Pôr a cultura no centro das nossas preocupações não é considerá-la como mero ornamento, mas como catalisador, numa palavra, como um incentivo ou um impulso criativo e inovador. E assim as artes e a investigação científica tornar-se-ão naturalmente complementares, tendo em vista a equidade, a eficiência e o progresso. Eis por que razão por exemplo o turismo cultural, pedagógico e científico e a mobilidade das pessoas devem ganhar em rigor e qualidade. Valorizemos a relação com a natureza e a paisagem, as artes tradicionais, o artesanato, a gastronomia, mas também a capacidade inovadora dos cientistas, pensadores e artistas contemporâneos. O turismo literário é apenas um exemplo e permite-nos usufruir do talento e da sensibilidade dos nossos escritores. E as qualidades da natureza, do clima e das gentes serão fatores de enriquecimento da qualidade de vida e da criatividade. Poderíamos falar de outros artistas e de outras artes, mas lembremo-nos de Eça de Queiroz, de Camilo Castelo Branco, de Guerra Junqueiro, de Teixeira de Pascoais, de José Régio, de Fernando Pessoa, de Miguel Torga, de Aquilino Ribeiro, de Agustina Bessa Luís, de Fernando Namora, de Orlando Ribeiro ou de Ruben A. – e a riqueza dos roteiros que podemos construir em torno da sua memória, das suas casas, numa integração natural, enriquecida pelo talento literário…  O património cultural é vida. Sejamos capazes de ligar com imaginação essa referência à capacidade de sermos mais exigentes, de modo a recusarmos o fatalismo e a inércia.
O célebre quadro de José Malhoa «Praia das Maçãs» (1926) constitui a ilustração do que dissemos. Aqui está o mar e o encontro da terra. Estamos no limite do Mediterrâneo no Atlântico. Como compreender Portugal sem esta ligação que torna a Península Ibérica base para a aventura do mundo?»


GOM, Artigo publicado  em Raiz e Utopia do CNC, em 26.04.2022

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