quarta-feira, 4 de maio de 2022

Crónicas da Infâmia


Metalúrgica de Mariupol  em pleno ataque pelas tropas russas 

Crónicas da Infâmia
10 . Da crueldade assassina

                                          O homem de ontem morreu no de hoje, 
                                          o de hoje morre no de amanhã.
                                                         Plutarco, De  E apud Delphos,18
                                                          
                                          Sofrer é um momento muito prolongado. 
                                          Não podemos dividi-lo por estações. […] 
                                          Para nós o tempo não progride. Ele gira.
                                          Parece circular em torno de um centro de dor.
                                                                 Oscar Wilde, De Profundis

                                                        
De acordo com  a tradição popular ,   o  tempo mede-se. É , por tal, mensurável. Tentar tecer  qualquer tratado sobre o tempo  ou evocar as diversas teorias quânticas  que sobre ele  circulam,  postuladas por clarividentes cientistas, não é esse o propósito. Não, o que me traz e quase me obriga a reescrever é o horror que chega diariamente e se arrasta  sem fim, desde 24 de Fevereiro, dia em que  a Ucrânia anunciou  ter sido alvo de 203 ataques russos, durante doze  horas. Tempo que é real , que matou, feriu, destruiu,  arrasou. Tempo que  gira, circula de ontem para hoje e num amanhã que se anuncia igual ou mais lúgubre. 
Por mais que se prometam conversações e se formem  mesas de negociação , o fumo da paz não eclode e nem o Vaticano é capaz de o propiciar.  O  Papa Francisco  anunciou ter comunicado a Putin, ao vigésimo dia desta infame invasão assassina, a disponibilidade para um encontro em Moscovo. Putin , lá do fundo do inferno, não ouviu, não respondeu, talvez de tão ensimesmado com o satânico  barulho da fornalha e o diabólico prazer   de  a encher. A miragem de um novo Império russo alteia-lhe o ferino coração e  agiganta-o perante a aniquilação dos mais fracos. São assim  os déspotas, os monstros que se julgam imortais e acima do Homem.  
E os dias sucedem-se num terrífico devir que por mais que  nos magoe , continuam  indiferentes ao peso da mágoa de cada um.  E se  ficamos incomodados  neste limbo de espectador , não sei como será viver  nessa guerra. A morte persegue feroz em desafio constante à vida que se deseja preservar. É uma luta titânica, em estado de autêntica vulnerabilidade e sofrimento. 
E há quem argumente que se busca a guerra e não a paz. Como é possível encontrar a paz , quando se é invadido em brutalidade e desmesura no seu próprio país. 
Vladimir Pastourkhov, (historiador e filósofo a viver em Londres) recorda que  quando esta catástrofe eclodiu , ela não lhe era inesperada . A tendência do regime russo para a fascização   desde 2011 ( quando se  sentira  um esboço de revolução liberal popular, NDLR), era evidente. E acrescenta: -" Publiquei em 2012 uma série de artigos , recebidos então como as meditações de um louco, porque escrevi que a natureza do regime tinha mudado e que a guerra com a Ucrânia estava em marcha . Esta guerra da  Ucrânia  é  a consequência inevitável da evolução do regime putinista, que tendo medo da revolução e desejando preservar o seu poder, utiliza a energia  das massas, desviando-as para uma agressão exterior. Putin teve sempre a mesma ideia: preservar o seu poder. E soube expulsar a revolução para o exterior à custa da guerra, para dirigir a energia das massas para o estrangeiro."
A finalidade está exposta e confirmada.  Putin tem como  ambição a  conquista de novos territórios. A Rússia, que sonha , terá de ser  o antigo império perdido. E  a Ucrânia é o território que lhe serve agora. A guerra feita pelo seu exército faz da sua pequenez, uma força. Violar, esquartejar, esventrar, envenenar é o alimento que o sustenta . Sendo um espírito fraco  encontra na tirania a sua fortaleza . 
Chegámos ao sentimento do não valor da existência quando compreendemos que ela não pode interpretar-se, no seu conjunto, nem com a ajuda do conceito de fim, nem com a do conceito de unidade, nem com a do conceito de verdade. Não chegamos a nada, não logramos coisa nenhuma dessa espécie, dizia Friedrich Nietzsche.
Que resta, então,  à  Ucrânia? Render-se e entregar o seu território aos apetites sanguinários de Putin?! Que fazer perante tal iniquidade? O mundo observa. A Ucrânia resiste, com  o seu território a ser  destruído  , qual Cartago saqueada, incendiada, quase regada com o mesmo sal.
E as pessoas que sobrevivem em caves, em bunkers improvisados, nos túneis húmidos e agora fétidos de uma metalúrgica bombardeada , fustigada pela cruel cegueira das bombas, na cidade destruída de Mariupol? E as crianças sem infância , à mingua dos dias de fome? E os idosos, frágeis, vulneráveis entre ruínas ?  Que fará o mundo? Espera que todos morram? Que tudo soçobre para Putin reinar. 
Não imagino como se possa baixar os braços  à sórdida voragem deste  facínora  invasor.
Será que a história da humanidade  pode ser escrita com tal infâmia?!
Que Deus não salve Putin. Viva a Ucrânia.
                               Praia da Rocha, 4 de Maio de 2022
Maria José Vieira de Sousa

2 comentários:

  1. As verdades contidas na sua indignação também cerram nossos punhos. É preciso denunciar, sim. Repartir essa indigesta solidariedade. O Sol brilha no céu, mas são sombrios esses dias que atravessamos pela negra fuligem que nos chega da distante Mariupol e pela psicosfera empestada do bolsonarismo que nos agride de tão perto.

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    1. A sua voz , poeta, chegou-me solidária nesta Primavera negra de tanta chaga em efervescência na Europa e no Mundo. Tem razão. Os maus governantes empestam e poluem fatalmente o planeta , dizimando o que o homem tem de mais nobre : a Liberdade e a Vida.

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