por Ted Chiang,
"O homem não pode aspirar a maior bênção no decurso dos seus dias. A história que tenho para contar é verdadeiramente estranha, e se nos fosse inteiramente tatuada no canto do olho, a maravilha desse trabalho não excederia a dos acontecimentos nela narrados, pois constitui um aviso para quem quiser ouvir e uma lição para quem quiser aprender. O meu nome é Fuwaad ibn Abbas, e nasci aqui em Bagdade, Cidade da Paz. O meu pai era mercador de cereais, mas eu trabalhei durante grande parte da minha vida como fornecedor de tecidos finos, negociando em sedas de Damasco, linho do Egipto e lenços de Marrocos, bordados a ouro. Era um comerciante próspero, mas sentia uma inquietude no coração, e nem a aquisição de bens de luxo ou a oferta de esmolas o conseguia apaziguar. Agora estou perante ti sem um único dirham na minha bolsa, mas sinto‑me em paz. Alá é o princípio de todas as coisas, mas, com a permissão de Vossa Majestade, vou começar a minha história pelo dia em que fui dar uma volta pelo bairro dos ferreiros. Precisava de comprar um presente para um homem com quem tinha negócios, e alguém me havia dito que ele seria capaz de gostar duma bandeja de prata. Depois de procurar durante meia hora, reparei que uma das maiores lojas do mercado mudara de dono. Ficava num local muito procurado, e o trespasse não devia ter sido barato, de modo que entrei para examinar os artigos. Nunca tinha visto um sortido de mercadoria tão maravilhoso. Junto à entrada havia um astrolábio equipado com sete discos incrustados a prata, uma clepsidra que sinalizava a hora certa e um rouxinol de bronze que trinava quando soprava o vento. No interior da loja havia mecanismos ainda mais engenhosos, e eu estava a olhar para eles como uma criança para um malabarista, quando um velho saiu de uma porta ao fundo. “Senhor, bem‑vindo ao meu humilde estabelecimento”, disse ele. “Chamo‑me Bashaarat. Em que posso ajudar‑te?” “Tens aqui artigos notáveis. Eu trato com negociantes de todas as partes do mundo, e nunca tinha visto nada igual. Se me permites a pergunta, onde é que adquiriste a tua mercadoria?” “Agradeço a gentileza das tuas palavras”, disse ele. “Tudo o que aqui vês foi fabricado na minha oficina, por mim mesmo ou pelos meus assistentes, supervisionados por mim.” Impressionou‑me que aquele homem pudesse ser tão versado em tantas artes. Interroguei‑o a respeito dos vários instrumentos à venda na loja e ouvi‑o discorrer com erudição sobre astrologia, matemática, geomancia e medicina. Falámos durante mais de uma hora, e o meu respeito e fascinação desabrocharam como uma flor acalentada pela aurora, até que ele mencionou as suas experiências de alquimia. “Alquimia?, perguntei. Isto surpreendeu‑me, pois ele não dava ares de ser pessoa que prometesse algo tão duvidoso. “Estás‑me a dizer que consegue transformar metais vis em ouro?” “Consigo, caro senhor, mas na verdade não é isso que a maioria dos alquimistas procura.” “Então o que procuram?” “Procuram uma fonte de ouro mais acessível do que a mineração dos solos. A alquimia descreve um método para fabricar ouro, mas o procedimento é tão árduo que, comparativamente, escavar o interior duma montanha parece mais fácil do que colher pêssegos da árvore.” Eu sorri. “Uma resposta inteligente. És claramente um homem instruído, mas eu tenho como certo que não se deve dar crédito à alquimia.” Bashaarat olhou para mim e reflectiu. “Construí recentemente uma coisa que poderá alterar essa tua opinião. Serás a primeira pessoa a quem a mostro. Queres vê‑la?” “Com todo o prazer.” “Acompanha‑me, por favor.” Conduziu‑me por uma porta ao fundo da loja. O quarto seguinte era uma oficina, ataviada com aparelhos cujas funções eu ignorava por completo — barras de metal envoltas em fio de cobre que, estendido, chegaria ao horizonte, espelhos instalados sob uma laje de granito circular que flutuava sobre mercúrio — mas Bashaarat passou por eles sem um olhar sequer. Em vez disso, conduziu‑me até um robusto pedestal, que me dava pelo peito, sobre o qual estava aprumado um sólido arco de metal. A abertura do arco tinha uma largura de dois palmos, e o aro era tão grosso que até o mais forte dos homens teria dificuldade em transportá‑lo. O metal era negro, mas tão polido e macio que, se fosse doutra cor, poderia ser usado como espelho. Bashaarat pediu‑me que me colocasse de maneira a ver o arco de lado, enquanto ele se postava diante da sua abertura. “Por favor, observa”, disse ele. Introduziu o braço pelo lado direito do arco, mas não o vi sair pelo outro lado. Era como se o braço tivesse sido cortado pelo cotovelo, e Bashaarat abanou com o coto para cima e para baixo, e depois retirou o braço intacto. Eu não esperara ver um homem tão instruído executar um truque de ilusionista, mas estava bem feito, e aplaudi educadamente. “Agora, espera um momento”, disse ele, dando um passo atrás. Eu esperei, e eis que um braço saiu pelo lado esquerdo do arco, sem um corpo a sustê‑lo. A manga coincidia com a da túnica de Bashaarat. O braço abanou para cima e para baixo e depois retirou‑se até desaparecer dentro do arco. O primeiro truque tinha‑me parecido uma simulação engenhosa, mas este era bastante superior, já que o pedestal e o arco eram claramente demasiado estreitos para esconderem uma pessoa. “Muito engenhoso!”, exclamei. “Obrigado, mas isto não é um mero truque de prestidigitação. O lado direito do arco precede em alguns segundos o lado esquerdo. Atravessar o arco é atravessar essa duração de forma instantânea.” “Não estou a perceber”, disse eu. “Deixa‑me repetir a demonstração.” Uma vez mais, enfiou o braço através do arco, e o braço desapareceu. Com um sorriso, empurrou‑o para a frente e para trás como se estivesse a jogar o jogo da corda. Depois puxou de novo o braço para fora e mostrou‑me a palma da mão aberta. Nela vi um anel que reconheci. “É o meu anel!” Olhei para a minha mão e verifiquei que o anel continuava no meu dedo. “Fizeste aparecer uma réplica.” “Não, na realidade, trata‑se do teu anel. Espera.”
Uma vez mais, um braço surgiu do lado esquerdo. Ansioso por descobrir o mecanismo do truque, apressei‑me a agarrar‑lhe a mão. Não era falsa, era uma mão perfeitamente cálida e viva como a minha. Dei‑lhe um puxão, e ela puxou‑me a mim. Depois, com uma destreza de carteirista, a mão tirou‑me do dedo o anel e o braço recuou para dentro do arco, desaparecendo completamente. “O meu anel desapareceu!”, exclamei. “Não, caro senhor”, disse ele. “O teu anel é este.” E deu‑me o anel que tinha na palma da mão. “Peço desculpa por este joguinho.” Voltei a colocá‑lo no meu dedo. “Mas já o tinhas na mão antes de ele me ter sido tirado.” Nesse momento, um braço emergiu do arco, desta feita pelo lado direito. “O que é isto?”, exclamei. Uma vez mais, reconheci o braço pela manga, antes de ele se retirar de novo, mas sem que tivesse visto Bashaarat introduzi‑lo pelo lado contrário. “Lembra‑te”, disse ele, “que o lado do direito do arco precede o esquerdo.” Dito isto, dirigiu‑se para o lado esquerdo do arco e introduziu por esse lado o braço, que mais uma vez desapareceu. Vossa Majestade já compreendeu por certo, mas eu só nesse instante é que percebi: o que quer que acontecesse no lado direito do arco era complementado, segundos depois, por um acontecimento no lado esquerdo. “Isto é feitiçaria?”, perguntei. “Não, meu senhor, nunca encontrei nenhum djin, e mesmo que encontrasse, não acredito que ele obedecesse às minhas ordens. Isto é uma forma de alquimia.” Tratou então de me explicar. Falou‑me da sua busca por minúsculos poros na pele da realidade, como os buracos que o caruncho escava na madeira, e que depois de ter encontrado um conseguiu expandi‑lo e alargá‑lo, da mesma forma que um vidreiro converte um pedaço de vidro fundido num tubo alongado, de maneira a que o tempo pudesse fluir como água por um dos lados enquanto do outro a abertura se solidificava como xarope. Confesso que não compreendi verdadeiramente a explicação, e portanto não posso atestar a sua veracidade. Tudo o que pude dizer em resposta foi, “Criaste algo verdadeiramente espantoso.” “Obrigado”, disse ele, “mas isto é apenas um prelúdio àquilo que eu pretendia mostrar‑te.” Convidou‑me a segui‑lo até outra sala, mais ao fundo. Ali deparei com um enorme portal circular, feito no mesmo metal preto e polido, instalado no centro da sala. “O que te mostrei ali atrás era um Portal de Segundos”, disse ele. “Este é um Portal de Anos. Os dois lados do portal estão separados por um intervalo de vinte anos.” Confesso que não compreendi de imediato esta observação. Imaginei‑o a enfiar o braço pelo lado direito e a esperar vinte anos que ele emergisse pelo outro lado, e pareceu‑me que seria um truque de magia muito confuso. Disse‑lhe isto, e ele riu‑se. “Pode ser usado dessa forma”, disse ele, “mas pensa antes no que aconteceria se o atravessasses.” Colocando‑se do lado direito do portal, fez‑me sinal para me aproximar, depois apontou para a abertura. “Espreita.” Espreitei e vi que no outro lado da sala os tapetes e as almofadas pareciam ser diferentes dos que havia visto ao entrar. Desloquei a cabeça de um lado para o outro e percebi que quando espreitava pelo portal via uma sala diferente daquela onde me encontrava. “Estás a ver esta sala tal como será daqui a vinte anos”, disse Bashaarat. Pisquei os olhos, como se estivesse perante uma miragem no deserto, mas aquilo que vi não se alterou. “E dizes que eu podia atravessá‑lo?”, perguntei. “Podias. E se o fizesses verias Bagdade tal como será daqui a vinte anos. Podias procurar o teu eu mais velho e conversar com ele. Depois podias atravessar de novo o Portal de Anos e regressar ao presente.” Estas palavras de Bashaarat causaram‑me uma espécie de vertigem. “Alguma vez fizeste isso?, perguntei‑lhe. “Alguma vez atravessaste o portal?” “Sim, tal como muitos dos meus clientes.” “Há bocado disseste‑me que eu era o primeiro a quem mostravas isto.” “E é verdade em relação a este Portal em particular. Mas durante muitos anos tive uma loja no Cairo, e foi lá que construí pela primeira vez um Portal de Anos. Mostrei‑o a muitas pessoas, que o experimentaram.” “O que é que elas aprenderam ao falarem com os seus eus mais velhos?” “Isso depende de cada pessoa. Se desejares, posso contar‑te a história de uma dessas pessoas.” Bashaarat narrou‑me então essa história, e se agradar a Vossa Majestade ouvi‑la, conto‑a aqui.”
Ted Chiang, in Exalação, Relógio D’Água Editores, pp.11-15
SOBRE O AUTOR:
Ted Chiang é um escritor norte-americano de ficção científica, nascido em 1967, em Port Jefferson, Nova Iorque. Foi galardoado com quatro Prémios Nebula, quatro Prémios Hugo, quatro Prémios Locus e o Prémio John W. Campbell para Melhor Novo Escritor. O seu conto “História da Tua Vida” serviu de base ao filme O Primeiro Encontro (2016). É artista residente na Universidade de Notre Dame.
"O homem não pode aspirar a maior bênção no decurso dos seus dias. A história que tenho para contar é verdadeiramente estranha, e se nos fosse inteiramente tatuada no canto do olho, a maravilha desse trabalho não excederia a dos acontecimentos nela narrados, pois constitui um aviso para quem quiser ouvir e uma lição para quem quiser aprender. O meu nome é Fuwaad ibn Abbas, e nasci aqui em Bagdade, Cidade da Paz. O meu pai era mercador de cereais, mas eu trabalhei durante grande parte da minha vida como fornecedor de tecidos finos, negociando em sedas de Damasco, linho do Egipto e lenços de Marrocos, bordados a ouro. Era um comerciante próspero, mas sentia uma inquietude no coração, e nem a aquisição de bens de luxo ou a oferta de esmolas o conseguia apaziguar. Agora estou perante ti sem um único dirham na minha bolsa, mas sinto‑me em paz. Alá é o princípio de todas as coisas, mas, com a permissão de Vossa Majestade, vou começar a minha história pelo dia em que fui dar uma volta pelo bairro dos ferreiros. Precisava de comprar um presente para um homem com quem tinha negócios, e alguém me havia dito que ele seria capaz de gostar duma bandeja de prata. Depois de procurar durante meia hora, reparei que uma das maiores lojas do mercado mudara de dono. Ficava num local muito procurado, e o trespasse não devia ter sido barato, de modo que entrei para examinar os artigos. Nunca tinha visto um sortido de mercadoria tão maravilhoso. Junto à entrada havia um astrolábio equipado com sete discos incrustados a prata, uma clepsidra que sinalizava a hora certa e um rouxinol de bronze que trinava quando soprava o vento. No interior da loja havia mecanismos ainda mais engenhosos, e eu estava a olhar para eles como uma criança para um malabarista, quando um velho saiu de uma porta ao fundo. “Senhor, bem‑vindo ao meu humilde estabelecimento”, disse ele. “Chamo‑me Bashaarat. Em que posso ajudar‑te?” “Tens aqui artigos notáveis. Eu trato com negociantes de todas as partes do mundo, e nunca tinha visto nada igual. Se me permites a pergunta, onde é que adquiriste a tua mercadoria?” “Agradeço a gentileza das tuas palavras”, disse ele. “Tudo o que aqui vês foi fabricado na minha oficina, por mim mesmo ou pelos meus assistentes, supervisionados por mim.” Impressionou‑me que aquele homem pudesse ser tão versado em tantas artes. Interroguei‑o a respeito dos vários instrumentos à venda na loja e ouvi‑o discorrer com erudição sobre astrologia, matemática, geomancia e medicina. Falámos durante mais de uma hora, e o meu respeito e fascinação desabrocharam como uma flor acalentada pela aurora, até que ele mencionou as suas experiências de alquimia. “Alquimia?, perguntei. Isto surpreendeu‑me, pois ele não dava ares de ser pessoa que prometesse algo tão duvidoso. “Estás‑me a dizer que consegue transformar metais vis em ouro?” “Consigo, caro senhor, mas na verdade não é isso que a maioria dos alquimistas procura.” “Então o que procuram?” “Procuram uma fonte de ouro mais acessível do que a mineração dos solos. A alquimia descreve um método para fabricar ouro, mas o procedimento é tão árduo que, comparativamente, escavar o interior duma montanha parece mais fácil do que colher pêssegos da árvore.” Eu sorri. “Uma resposta inteligente. És claramente um homem instruído, mas eu tenho como certo que não se deve dar crédito à alquimia.” Bashaarat olhou para mim e reflectiu. “Construí recentemente uma coisa que poderá alterar essa tua opinião. Serás a primeira pessoa a quem a mostro. Queres vê‑la?” “Com todo o prazer.” “Acompanha‑me, por favor.” Conduziu‑me por uma porta ao fundo da loja. O quarto seguinte era uma oficina, ataviada com aparelhos cujas funções eu ignorava por completo — barras de metal envoltas em fio de cobre que, estendido, chegaria ao horizonte, espelhos instalados sob uma laje de granito circular que flutuava sobre mercúrio — mas Bashaarat passou por eles sem um olhar sequer. Em vez disso, conduziu‑me até um robusto pedestal, que me dava pelo peito, sobre o qual estava aprumado um sólido arco de metal. A abertura do arco tinha uma largura de dois palmos, e o aro era tão grosso que até o mais forte dos homens teria dificuldade em transportá‑lo. O metal era negro, mas tão polido e macio que, se fosse doutra cor, poderia ser usado como espelho. Bashaarat pediu‑me que me colocasse de maneira a ver o arco de lado, enquanto ele se postava diante da sua abertura. “Por favor, observa”, disse ele. Introduziu o braço pelo lado direito do arco, mas não o vi sair pelo outro lado. Era como se o braço tivesse sido cortado pelo cotovelo, e Bashaarat abanou com o coto para cima e para baixo, e depois retirou o braço intacto. Eu não esperara ver um homem tão instruído executar um truque de ilusionista, mas estava bem feito, e aplaudi educadamente. “Agora, espera um momento”, disse ele, dando um passo atrás. Eu esperei, e eis que um braço saiu pelo lado esquerdo do arco, sem um corpo a sustê‑lo. A manga coincidia com a da túnica de Bashaarat. O braço abanou para cima e para baixo e depois retirou‑se até desaparecer dentro do arco. O primeiro truque tinha‑me parecido uma simulação engenhosa, mas este era bastante superior, já que o pedestal e o arco eram claramente demasiado estreitos para esconderem uma pessoa. “Muito engenhoso!”, exclamei. “Obrigado, mas isto não é um mero truque de prestidigitação. O lado direito do arco precede em alguns segundos o lado esquerdo. Atravessar o arco é atravessar essa duração de forma instantânea.” “Não estou a perceber”, disse eu. “Deixa‑me repetir a demonstração.” Uma vez mais, enfiou o braço através do arco, e o braço desapareceu. Com um sorriso, empurrou‑o para a frente e para trás como se estivesse a jogar o jogo da corda. Depois puxou de novo o braço para fora e mostrou‑me a palma da mão aberta. Nela vi um anel que reconheci. “É o meu anel!” Olhei para a minha mão e verifiquei que o anel continuava no meu dedo. “Fizeste aparecer uma réplica.” “Não, na realidade, trata‑se do teu anel. Espera.”
Uma vez mais, um braço surgiu do lado esquerdo. Ansioso por descobrir o mecanismo do truque, apressei‑me a agarrar‑lhe a mão. Não era falsa, era uma mão perfeitamente cálida e viva como a minha. Dei‑lhe um puxão, e ela puxou‑me a mim. Depois, com uma destreza de carteirista, a mão tirou‑me do dedo o anel e o braço recuou para dentro do arco, desaparecendo completamente. “O meu anel desapareceu!”, exclamei. “Não, caro senhor”, disse ele. “O teu anel é este.” E deu‑me o anel que tinha na palma da mão. “Peço desculpa por este joguinho.” Voltei a colocá‑lo no meu dedo. “Mas já o tinhas na mão antes de ele me ter sido tirado.” Nesse momento, um braço emergiu do arco, desta feita pelo lado direito. “O que é isto?”, exclamei. Uma vez mais, reconheci o braço pela manga, antes de ele se retirar de novo, mas sem que tivesse visto Bashaarat introduzi‑lo pelo lado contrário. “Lembra‑te”, disse ele, “que o lado do direito do arco precede o esquerdo.” Dito isto, dirigiu‑se para o lado esquerdo do arco e introduziu por esse lado o braço, que mais uma vez desapareceu. Vossa Majestade já compreendeu por certo, mas eu só nesse instante é que percebi: o que quer que acontecesse no lado direito do arco era complementado, segundos depois, por um acontecimento no lado esquerdo. “Isto é feitiçaria?”, perguntei. “Não, meu senhor, nunca encontrei nenhum djin, e mesmo que encontrasse, não acredito que ele obedecesse às minhas ordens. Isto é uma forma de alquimia.” Tratou então de me explicar. Falou‑me da sua busca por minúsculos poros na pele da realidade, como os buracos que o caruncho escava na madeira, e que depois de ter encontrado um conseguiu expandi‑lo e alargá‑lo, da mesma forma que um vidreiro converte um pedaço de vidro fundido num tubo alongado, de maneira a que o tempo pudesse fluir como água por um dos lados enquanto do outro a abertura se solidificava como xarope. Confesso que não compreendi verdadeiramente a explicação, e portanto não posso atestar a sua veracidade. Tudo o que pude dizer em resposta foi, “Criaste algo verdadeiramente espantoso.” “Obrigado”, disse ele, “mas isto é apenas um prelúdio àquilo que eu pretendia mostrar‑te.” Convidou‑me a segui‑lo até outra sala, mais ao fundo. Ali deparei com um enorme portal circular, feito no mesmo metal preto e polido, instalado no centro da sala. “O que te mostrei ali atrás era um Portal de Segundos”, disse ele. “Este é um Portal de Anos. Os dois lados do portal estão separados por um intervalo de vinte anos.” Confesso que não compreendi de imediato esta observação. Imaginei‑o a enfiar o braço pelo lado direito e a esperar vinte anos que ele emergisse pelo outro lado, e pareceu‑me que seria um truque de magia muito confuso. Disse‑lhe isto, e ele riu‑se. “Pode ser usado dessa forma”, disse ele, “mas pensa antes no que aconteceria se o atravessasses.” Colocando‑se do lado direito do portal, fez‑me sinal para me aproximar, depois apontou para a abertura. “Espreita.” Espreitei e vi que no outro lado da sala os tapetes e as almofadas pareciam ser diferentes dos que havia visto ao entrar. Desloquei a cabeça de um lado para o outro e percebi que quando espreitava pelo portal via uma sala diferente daquela onde me encontrava. “Estás a ver esta sala tal como será daqui a vinte anos”, disse Bashaarat. Pisquei os olhos, como se estivesse perante uma miragem no deserto, mas aquilo que vi não se alterou. “E dizes que eu podia atravessá‑lo?”, perguntei. “Podias. E se o fizesses verias Bagdade tal como será daqui a vinte anos. Podias procurar o teu eu mais velho e conversar com ele. Depois podias atravessar de novo o Portal de Anos e regressar ao presente.” Estas palavras de Bashaarat causaram‑me uma espécie de vertigem. “Alguma vez fizeste isso?, perguntei‑lhe. “Alguma vez atravessaste o portal?” “Sim, tal como muitos dos meus clientes.” “Há bocado disseste‑me que eu era o primeiro a quem mostravas isto.” “E é verdade em relação a este Portal em particular. Mas durante muitos anos tive uma loja no Cairo, e foi lá que construí pela primeira vez um Portal de Anos. Mostrei‑o a muitas pessoas, que o experimentaram.” “O que é que elas aprenderam ao falarem com os seus eus mais velhos?” “Isso depende de cada pessoa. Se desejares, posso contar‑te a história de uma dessas pessoas.” Bashaarat narrou‑me então essa história, e se agradar a Vossa Majestade ouvi‑la, conto‑a aqui.”
Ted Chiang, in Exalação, Relógio D’Água Editores, pp.11-15
Ted Chiang é um escritor norte-americano de ficção científica, nascido em 1967, em Port Jefferson, Nova Iorque. Foi galardoado com quatro Prémios Nebula, quatro Prémios Hugo, quatro Prémios Locus e o Prémio John W. Campbell para Melhor Novo Escritor. O seu conto “História da Tua Vida” serviu de base ao filme O Primeiro Encontro (2016). É artista residente na Universidade de Notre Dame.
Sem comentários:
Enviar um comentário