“Ah, como é diferente o
obituário em Portugal! Quando, na pátria de Camilo, alguém, ao fim de uma
admirável vida de destacada criação, em qualquer pelouro (literatura, música,
pintura, ciência, política) morre, não é costume fazer-se, dessa singular personalidade,
um balanço equilibrado, objectivo, dando o seu a seu dono, sublinhando-lhe os
ganhos, mas não omitindo os deslizes, os momentos menos felizes e, sobretudo,
não perdendo de vista o sentido de perspectiva e não dando ao recentemente
falecido um exagero de louros, em injusto e ingrato detrimento de outros que
laboraram no mesmo terreno, também com inegável galhardia.
Não, entre nós, o morto
mais recente tem direito a TUDO, não ficando nada para mais ninguém morto ou
vivo. Igualmente se dizia que o último a falar com Hitler era sempre aquele que
ganhava… Tem-se visto, até à náusea, com os falecimentos de Herberto Hélder, Eduardo
Lourenço, Agustina Bessa-Luís, Vasco Pulido Valente, Maria Velho da Costa e,
agora, com a grande actriz Eunice Muñoz. Eunice era, fora de qualquer dúvida,
uma extraordinária intérprete de teatro e uma pessoa de quem todos gostávamos,
pela sua afabilidade, beleza, generosidade e grande sentido de partilha. Tive
ocasião de a conhecer pessoalmente, em Moçambique e, depois, em Portugal e
fiquei a gostar muito dela, além de muito a admirar. O que me não impede de
observar – e isto em nada fere o seu enorme talento de actriz – que Eunice
tinha um enorme instinto para as tábuas de Molière, embora não possuísse uma
grande cultura nem mesmo uma grande cultura teatral. Isto, que era um facto,
não a impedia, repito, de ser quem era, quando subia ao palco. Também o grande
actor inglês John Gielgud, considerado um dos maiores do século XX e, por
muitos críticos, o maior intérprete de Shakespeare, confessou, com grande
humildade, aos noventa anos, que detestava Shakespeare, que o achava aborrecido
e muito difícil de compreender; e confessou mais: que ele, Gielgud, era um
senhor frívolo e com pouca cultura. Nada disso o impediu de ser quem foi.
Mas o que aqui me traz
hoje não é isso, mas sim o exagero dos obituários ou aquilo a que Eça de
Queirós chamava “ a coragem de afirmar”. Mais uma vez, assim que a grande
Eunice faleceu, começaram os excessos meridionais de alguns obituários. Dou só
um exemplo, o de Diogo Infante, actor que muito admiro, tendo-o já dito por
escrito, porque é isso mesmo que penso: é um notabilíssimo actor. Mas Diogo
Infante, talvez por ter sido grande amigo, admirador e devedor de Eunice Muñoz,
não se ficou por dizer que ela era uma das maiores actrizes de todos os tempos,
mas foi ao ponto de dizer que ela foi “a maior” actriz de todos os tempos. Ora,
neste domínio – o teatro – apetece-me perguntar como é que ele sabe aquilo que
afirma. Tendo ele nascido em 1967, não viu certamente, em palco, grandes
actrizes como Lucinda Simões, Palmira Bastos ou mesmo Maria Barroso, que teve,
infelizmente, por razões políticas, uma curta vida teatral. Eu tive o
privilégio de ter visto, por mais de uma vez, em palco, a grande Palmira Bastos
e a grande Maria Barroso (esta, em duas inesquecíveis criações de personagens
do teatro de Régio e de Lorca). Infelizmente, nasci demasiado tarde para poder
ter visto Lucinda Simões. Pois bem, julgo que a única coisa que me é permitido
dizer é que Eunice pertence, de direito, a esta gloriosa constelação. Nela,
qual das estrelas brilhou mais, não faço a mais pequena ideia e penso,
honestamente, que quem as viu brilhar também não faz. Nem me parece de grande
interesse decidi-lo. Como não tem interesse nenhum, mas mesmo nenhum, saber se
Eça é maior do que Camilo ou Camilo maior do que Eça.”
Eugénio
Lisboa, 18.04.2022
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