"Nevoeiro. Ao longe, os Alpes, monstros brancos, que ora surgem, ora desaparecem no ar escuro.
Quando começo a escrever , impõe-se-me partir da hipótese da integridade mental ( o que quer dizer, simplesmente, que me será cada vez mais difícil escrever).
Em Feldafing, não escrevo. Não trabalho, não sei se trabalharei, sequer, um dia, já nem sei como trabalhar o Kaddish (1), esse romance de que leio excertos em alemão um pouco por todo o lado, e nem sei se fui eu a escrevê-lo , e, se sim, como fiz - deixei de saber escrever.
Sabiam que Lenine caçava rouxinóis à pedrada? É verdade, vi no filme de um jovem realizador russo que passou na televisão. Imagens de um Lenine de traços rígidos , apopléctico. Levaram-no para um sítio qualquer, na Crimeia, na Primavera, para a beira de um lago, ao sol, esperando que , aí, se sentisse bem. Mas os rouxinóis roubavam-lhe o sono todas as manhãs. Então, certa manhã, precipitou-se para o jardim e começou a perseguir os rouxinóis. Agarrou em pedras, que lhes atirava. De súbito, sentiu que já não era capaz de levantar as pedras: paralisara. Era a vingança elegante, leve como um sopro, mas implacável, dos rouxinóis sobre o grande revolucionário, que não podia suportar o seu canto. Uma vingança de artista."
Imre Kertész, in Um Outro, Crónica de uma Metamorfose, tradução de Ernesto Rodrigues, Editorial Presença, Lisboa, 2009, p 31
(1) - Kaddish para uma criança que não vai nascer, na Editorial Presença, 2004, encerra a trilogia iniciada com Sem Destino. (NT)
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