IV - Um mundo em desagregação
por Amin Maalouf
" Uma das minhas grandes tristezas de hoje diz respeito à Europa. Quando falo disso, respondem-me invariavelmente que sou demasiado exigente, que deveria ter em mente o que foi este continente durante séculos e até uma data não muito longínqua: um campo de confronto entre nacionalismos desenfreados, um terreno de experimentação para as piores barbáries... Estas páginas sombrias não foram viradas agora e para sempre? Atravessa-se a fronteira franco-alemã sem sequer nos darmos conta, como se ainda estivéssemos no mesmo país, como se nunca tivesse havido combates sangrentos pela posse da Alsácia-Lorena. E em Berlim passa-se de um bairro ocidental para um bairro no leste sem prestar atenção ao traçado do antigo Muro. Em que outra parte do mundo se viu algo semelhante? Certamente, não na minha região natal, que seguiu o caminho inverso, a ponto de muitas das suas regiões e cidades, que na minha juventude podia percorrer sem grandes riscos , se terem tornado impraticáveis.
Não gostaria de minimizar os extraordinários progressos alcançados pelos europeus desde o final da Segunda Guerra Mundial. Aplaudo-os de todo o coração. Mas não posso negar que sinto hoje um certo desencanto. Porque eu esperava outra coisa do meu continente de adopção: que ele oferecesse a toda a humanidade uma bússola, que evitasse que se perdesse, que a impedisse de se desagregar em tribos, em comunidades, em facções e em clãs.
Quando olho para a turbulência deste século lamento que não exista nenhuma autoridade política e moral para a qual os nossos contemporâneos possam voltar-se com confiança e esperança; nenhuma que seja ao mesmo tempo portadora de valores universais e realmente capaz de influenciar o curso da história. E quando passo o olhar sobre o mundo e me pergunto, não sem angústia, quem poderia desempenhar hoje essa missão, parece-me que só a Europa estaria em condições de o fazer , se dispusesse dos meios necessários.
Porquê a Europa? Na verdade, não é " a candidata natural" a esse papel. Logicamente, este deveria antes caber aos Estados Unidos da América. Eles têm desde há muito o desejo de exercer uma liderança global e possuem o essencial das qualidades necessárias. Os princípios sobre os quais a União foi fundada revelam, desde o início, uma inegável preocupação com a universalidade, e a sua composição étnica reflecte a diversidade do mundo; de forma imperfeita , é certo, mas mais do que outros grandes países. Acima de tudo, acenderam , durante o século XX, ao primeiro lugar entre as Potências, e em todos os domínios: produção industrial, força militar, investigação científica, influência política e intelectual, e assim por diante. Tendo vencido três grandes confrontos planetários, a Primeira Guerra Mundial, depois a Segunda e a seguir a Guerra Fria, adquiriram, entre as nações, um primado que ninguém pode seriamente contestar. Seria lógico que se constituíssem, para toda a humanidade, na autoridade de referência, e por muito tempo. Mas não souberam estar à altura de cumprir essa missão.
O mais surpreendente é que o seu fracasso, hoje manifesto, não se deve à perda do poder - que, no momento da redacção deste livro, permanece formidável - nem à acção dos seus adversários, mas à incapacidade de os seus líderes sucessivos assumirem de forma coerente a supremacia que adquiriram."
Amin Maalouf, in O Naufrágio das Civilizações, Editorial Presença, Março 2020, pp,196, 197
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