quinta-feira, 10 de março de 2022

Eu falo das casas e dos homens

Adolfo Casais Monteiro (1908-1972) compôs , em 1944, o belíssimo poema Europa, quando o beligerante ódio destruía o mundo.  Com o  continente europeu devastado pela guerra , exortava a uma “Europa, ó mundo a criar!// Europa, ó sonho por vir /enquanto à terra não desçam/ as vozes que já moldaram/ tua figura ideal,/ Europa, sonho incriado,/ até ao dia em que desça/ teu espírito sobre as águas!”
O poema está composto em cinco partes. Apresenta--se a IV parte  pela consentânea acutilância com a encarniçada guerra ditada à Ucrânia  por um  cruel  ditador vizinho. 

IV

Eu falo das casas e dos homens,
dos vivos e dos mortos:
do que passa e não volta nunca mais.. .
Não me venham dizer que estava materialmente
previsto,
ah, não me venham com teorias!
Eu vejo a desolação e a fome,
as angústias sem nome,
os pavores marcados para sempre nas faces trágicas
das vítimas.

E sei que vejo, sei que imagino apenas uma ínfima,
uma insignificante parcela da tragédia.
Eu, se visse, não acreditava.
Se visse, dava em louco ou em profeta,
dava em chefe de bandidos, em salteador de estrada,
- mas não acreditava!

Olho os homens, as casas e os bichos.
Olho num pasmo sem limites,
e fico sem palavras,
na dor de serem homens que fizeram tudo isto:
esta pasta ensanguentada a que reduziram a terra inteira,
esta lama de sangue e alma,
de coisa a ser,
e pergunto numa angústia se ainda haverá alguma esperança,
se o ódio sequer servirá para alguma coisa...

Deixai-me chorar - e chorai!
As lágrimas lavarão ao menos a vergonha de estarmos vivos,
de termos sancionado com o nosso silêncio o crime feito instituição,
e enquanto chorarmos talvez julguemos nosso o drama,
por momentos será nosso um pouco do sofrimento alheio,
por um segundo seremos os mortos e os torturados,
os aleijados para toda a vida, os loucos e os encarcerados,
seremos a terra podre de tanto cadáver,
seremos o sangue das árvores,
o ventre doloroso das casas saqueadas,
sim, por um momento seremos a dor de tudo isto. . .

Eu não sei porque me caem as lágrimas,
porque tremo e que arrepio corre dentro de mim,
eu que não tenho parentes nem amigos na guerra,
eu que sou estrangeiro diante de tudo isto,
eu que estou na minha casa sossegada,
eu que não tenho guerra à porta,
- eu porque tremo e soluço?
Quem chora em mim, dizei - quem chora em nós?

Tudo aqui vai como um rio farto de conhecer os seus meandros:
as ruas são ruas com gente e automóveis,
não há sereias a gritar pavores irreprimíveis,
e a miséria é a mesma miséria que já havia...
E se tudo é igual aos dias antigos,
apesar da Europa à nossa volta, exangüe e mártir,
eu pergunto se não estaremos a sonhar que somos gente,
sem irmãos nem consciência, aqui enterrados vivos,
sem nada senão lágrimas que vêm tarde, e uma noite à volta,
uma noite em que nunca chega o alvor da madrugada...

Excerto do poema Europa, de Adolfo Casais Monteiro.
Adolfo Casais Monteiro (Porto, 4 de Julho de 1908 - São Paulo, 23 de Julho de 1972) foi um poeta, ficcionista, crítico literário e ensaísta português. Como grande   resistente ao fascismo, foi preso ,  impedido de leccionar e  obrigado ao exílio. Defensor de um mundo novo, cultor da Paz e da Liberdade ,  abriu horizontes ao sonho futuro de uma Europa unida . "O poema  "Europa" foi lido aos microfones da BBC em 1945, mas os portugueses não escutaram o grito do poeta. A emissão estava fechada pela censura. 
O poema está dividido em cinco partes. Começa por descrever uma Europa que necessitava urgentemente de renascer, tal como uma “Fénix, das cinzas” (Monteiro 1946: 127), para mostrar-se em toda a sua glória num “sonho futuro” (ibidem)."

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