" Os últimos compassos do Boléro são tensos, violentos, quase insuportáveis. O som sobe, enche a sala, agora toda a assistência está de pé, olha para o palco onde os bailarinos rodopiam , aceleram o movimento. Há pessoas que gritam, os tantãs retumbam e sobrepõem-se às vozes. Ida Rubinstein, os bailarinos são fantoches, arrebatados pela loucura. As flautas, os clarinetes, os saxofones, os violinos, os tambores, os címbalos , os timbales, todos os instrumentos se flectem, extremamente tensos , até à estrangulação, até quebrarem as cordas e as vozes, até quebrarem o egoísta silêncio do mundo.
A minha mãe, quando me contou a estreia do Boléro, falou-me da sua emoção, dos gritos, dos aplausos e dos assobios, do tumulto. Algures na mesma sala , encontrava-se um homem que ela nunca conheceu, Claude Lévi-Strauss. Como ele, muito mais tarde, a minha mãe confiou-me que aquela música mudara a sua vida.
Agora compreendo porquê. Sei o que significava para a sua geração aquela frase repetida, seringada, imposta pelo ritmo e o crescendo. O Boléro não é uma peça musical como as outras. É uma profecia. Conta a história de uma raiva, de uma fome. Quando termina em violência, o silêncio que se segue é terrível para os sobreviventes atordoados."
J.M.G. Le Clézio, in A Música da Fome, Publicações Dom Quixote, Julho de 2009
Sempre que escuto o Boléro de Ravel, relembro, de imediato , dois grandes momentos de intensa emoção e fulgor. O filme " Les uns et les autres" de Claude Lelouch onde se apresenta, em bailado, uma das mais belas criações desta obra-prima , com a espantosa coreografia de Maurice Béjart e a soberba execução de Jorge Donn. O outro momento refere-se ao romance A Música da Fome, de que se extraiu o texto publicado ontem, e se republica agora a nota introdutória do seu autor, J.M. Le Clézio, Prémio Nobel da Literatura de 2008. Romance que tem como cenário a última Guerra Mundial e a consequente acção devastadora que provocou em França. Tal como o Boléro, a fome desenvolve-se em crescendo até à inanição, o seu apogeu final. É a Música da Fome. «Esta fome está dentro de mim. (…) Contém uma luz intensa que me impede de esquecer a infância. Sem ela, não teria com certeza conservado a memória desses tempos, desses anos tão longos, em que nos faltava tudo."
Um livro belo de uma escrita sóbria e despida que nos enleva e marca.
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