Chegada
por João Ubaldo Ribeiro
"Quem não estiver apto a disputar o pentatlo nos Jogos Olímpicos não deve viajar
do Rio de Janeiro a Berlim no que as companhias aéreas chamam de “classe económica”,
embora saibam que se trata de um eufemismo para “vagão de búfalos” (exceção feita à
comida, já que a dos búfalos é certamente melhor). Foi o que pensei, ao levantar-me, um
pouco antes da hora do pouso, para batalhar com os outros búfalos por um lugar na fila do
banheiro. Qualquer um que tenha participado de um evento desse tipo o trará sempre na
memória — aquela coleção tocante de velhotas ansiosas, jovens senhores de tornozelos
entrelaçados e olhos cravados no teto, damas de bolsa na mão fingindo que vão ali apenas
para retocar a maquilhagem, um cavalheiro de ar severo que mira seus antecessores na fila com
evidente rancor, a indignação geral contra a gordinha que acaba de entrar e fechar a porta
levando consigo um exemplar de A montanha mágica, um menino de nariz escorrendo
explicando à mãe que não se responsabiliza pelo que pode acontecer, se não lhe conseguirem
uma vaga imediatamente.
Pentatlo não, decatlo, penso outra vez, ao descermos em Frankfurt, submergindo em
sacolas e maletas, e descobrirmos que nossa conexão para Berlim deve ser feita em A-23,
logo à direita de A-42, atrás de B-28, passando pelo controle de passaportes ou, se
preferirmos algo mais simples, só três quilómetros mais distante, à esquerda de A-17,
ignorando o corredor B e indo direto ao objetivo, não sem antes nos submetermos à inspeção
de bagagem em A-15E. Tentamos ambas as hipóteses. No curso de umas duas horas, entramos
numa fila de passageiros para Bangladesh, saímos no último instante para uma fila de turistas
italianos interessados em visitar as vitrines de mulheres de Hamburgo, assinamos uma petição
a favor da independência da Lituânia achando que estávamos nos inscrevendo na lista de
passageiros para Berlim, quase nos incorporamos a um grupo japonês que ia conhecer a Bolsa
de Frankfurt e, finalmente, escorregamos sem querer de uma esteira rolante que nos conduziria
a Bad Homburg sem escalas e, ao levantarmos os olhos, nos achamos — milagre! — diante de
A-23. Minha filha Chica, de seis anos, exausta mas aliviada como todos nós, fez um
comentário.
— A Alemanha é maior do que o Brasil, hem, pai?
— Não. O Brasil é muito maior.
— Pode ser, mas o aeroporto aqui de Fanfu é maior do que o Brasil, não é, não?
— Ah, isso é, cabem uns cinco Brasis aqui dentro — concordei, despencando numa
cadeira, olhando em torno e me dando conta pela primeira vez de que estava mesmo na
Alemanha e, se tudo corresse como previsto, ainda estaria por muito tempo.
Por que a Alemanha? Sim, há várias explicações, digamos, superficiais ou parciais: fui
convidado pelo DAAD,[1] vivo de escrever e, portanto, posso trabalhar em qualquer lugar,
tenho amigos aqui etc. etc. Mas isto não satisfaz, porque sei, embora não possa explicar, que
existe algo mais entre este país e eu, algo misterioso. Fico imaginando se não teria sido
alemão numa vida pregressa. Se Shirley McLaine teve tantas vidas pregressas, por que não
posso haver tido pelo menos uma? Olho para o senhor sisudo a meu lado, com uma peninha
faceira adornando seu chapéu, em amável contraste com sua expressão austera. Sim, talvez eu
tenha sido alguma vez um bávaro, um gordinho chamado Johannes, famoso em toda Munique
pela capacidade de consumir cerveja em quantidades industriais — um bávaro como outro
qualquer, pensando bem. Quase viro para esse meu conterrâneo e lhe dirijo um sorridente
“Grüss Gott!”. Mas me contenho. Posso ter sido bávaro em outra vida, mas, infelizmente,
para a presente encarnação brasileira, não trouxe comigo meus conhecimentos da língua
alemã, que hoje falo com menor desenvoltura do que falaria um homem de Neandertal.
O devaneio, contudo, não passa. Esta minha ligação com a Alemanha, eu sempre voltando
aqui, meus livros lidos aqui, tantos amigos aqui, sentindo-me tão bem aqui... Claro, meu
sobrenome pode ser traduzido como Bach. Claro, claro, minha outra encarnação foi na
qualidade de parente do Johann Sebastian, limpando o cravo que meu primo tão bem
temperava e fazendo outros servicinhos em Brandemburgo, inclusive os que meu talento
musical permitia, tais como acionar os foles do órgão da igreja. É, pode ser, pode ser.
O embarque é anunciado, entro no avião distraído, ainda preocupado com minha elusiva
identidade alemã. E me encontrava no século XVIII, num baile em Magdenburg, em vistoso
uniforme militar e de olho na bela filha do Bürgermeister, quando Chica me interrompeu as
reminiscências com uma cotovelada.
— Pai, pai, Berlim! Berlim!
Sim, Berlim!
Levantei-me, arrepanhei sacolas e maletas, encaminhei-me de peito erguido
para a saída. Berlim, vida nova, a História desenrolando alguns de seus mais empolgantes
capítulos à minha frente, glórias e emoções logo ali, a esperar-me de braços abertos.
Hélas! — como exclamou Napoleão, no dia em que, em certo prado de Waterloo, tive
oportunidade de vê-lo, na minha então condição de alferes de um regimento prussiano. As
coisas nem sempre são previsíveis, seja para os Bonaparte, seja para os Bach. E eis que, hoje
aqui, pleno residente de Berlim, não disponho de glórias para contar-vos, mas de histórias
quiçá melancólicas, tais como a do Tartamudo do Kurfürstendamm, a do Fantasma do
Storkwinkel e a do Moscão da Schwarzbacher Straβe. Histórias que contaria agora, se me
permitisse o espaço, mas que contarei depois, se vos permitir a paciência. Ich bin ein
Berliner, como já se disse antes."
João Ubaldo Ribeiro, in Um brasileiro em Berlim, Editora Objectiva, pp. 3, 4
[1] Deutscher Akademische Austauschdienst — Entidade alemã que convida artistas para passar temporadas em Berlim.
(N. do A.)
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