“Volto ao tema da pouca validade do argumento de autoridade, porque penso que a atracção irresistível que ele tem para muitos, de várias áreas da vida intelectual, deve ser insistentemente combatida e desacreditada. A obtusidade e o amor às crenças duradouras têm a carapaça dura e resistem ao embate do argumento mais vigoroso. Mais: alguns até pensam que o recurso a este frágil argumento – a autoridade - não se verifica em todos os países do planeta, havendo algum território abençoadamente imune a este atropelo da lógica… Roubando ao romance negro americano uma fórmula feliz, eu responderia a esta última convicção: you believe that, you believe anything.
Volto também a isto, não tanto pelo amor à argumentação, mas antes pelo gosto de uma conversa civilizada e, sendo possível, esclarecedora e estimulante. A este propósito, lembraria que o acerado e genial prosador, Jonathan Swift, o criador de As Viagens de Gulliver, disse algures que argumentar é a pior forma de conversar, e eu estou muito de acordo com ele. Vamos então conversar, procurando eu contar-vos umas histórias elucidativas e deixando, no possível, algumas pistas saudáveis e desopilantes.
É muito curioso serem os que mais reagem a quem tenta demolir a falácia da “autoridade”, a ela se dizendo imunes, os que mais sistematicamente a ela recorrem, para “provarem” o seu ponto de vista. Ora, insisto, invocar a autoridade intelectual de alguém, como sustentação válida de um ponto de vista qualquer, é uma das mais preguiçosas e nefastas cobardias intelectuais que conheço. É recusar o único caminho decente para chegar a uma verdade boa mas, mesmo assim, provisória: pensar, investigar, escrutinar, iluminar, com luz nova, convicções muitas vezes sem outro fundamento que não seja a sua antiguidade, em suma, olhar com intrepidez e frescura o que se tem na frente, sem cuidar do que disse Aristóteles ou Ptolomeu ou Newton ou Einstein, porque até estes se enganaram e segui-los cegamente é o mais seguro caminho para o erro. Ser céptico, ser humilde, gostar mais de fazer perguntas do que de dar respostas, não temer – e até gostar – de abandonar uma hipótese de trabalho, que já serviu, por outra que agora parece servir melhor, não se agarrar, em suma, nem à autoridade dos outros nem à sua própria – é assim que se faz avançar o conhecimento. As duas capitosas epígrafes que estão à cabeça deste texto dizem isso mesmo: a primeira, do lógico matemático, Bertrand Russell, diz-nos, em resumo: deixa lá o Aristóteles e conta mas é os dentes da tua mulher ou da tua irmã; a outra, vinda de um dos maiores cientistas do século XX, o dinamarquês Niels Bohr, dá-nos este legado de humildade criadora: não afirmo, pergunto, não se agarrem pois ao que digo, investiguem pelos vossos próprios meios, talvez eu não esteja certo ou completamente certo e, se eu próprio duvido de mim, por que haviam Vocês de tomar-me como autoridade? As humildes e sábias propostas de Russell e Bohr são talvez a forma mais curta e eficaz de nos ensinar a não respeitarmos, cegamente, argumentos de “autoridade” intelectual. Depois, basta olhar em volta e escrutinar o decurso dos séculos, para fazermos um opulento inventário das “bêtises” proferidas por homens eminentes. Os disparates que proferiram não os tornam menos eminentes, mas recomendam-nos cautela, quando se trate de querermos segui-los obedientemente. Quem imaginaria, por exemplo, que o grande Flaubert, em carta à sua amiga e admirada George Sand, poderia escrever esta enormidade: “Quanto ao bom povo, a instrução pública e obrigatória daria cabo dele.”? E quem poderia supor que Ernest Renan, talvez o homem mais sábio do século XIX, seria capaz de proferir este pantagruélico disparate: “Quem sabe se o infinito real é tão vasto como se supõe?” Cuidado: o erro e, mesmo, o mais inconcebível disparate pode ser – e tem sido – proferido pelas criaturas mais eminentes, debaixo do sol. Eu atrever-me-ia, até, a corrigir Descartes, quando este diz que o bom senso é a coisa mais bem distribuída do mundo: proponho, antes, que o erro é que é a mercadoria mais bem distribuída do mundo. O grande poeta Victor Hugo – que Gide, relutantemente, considerava o maior poeta que a França jamais teve – dizia, de Racine, grande dramaturgo e sublime poeta, esta coisa espantosa: “É um homem de segunda ordem.” Recebeu, em contrapartida, este mimo, de Proudhon, sobre as suas Les Orientales: “É preciso mais génio para ser remador no Ródano do que para fazer as Orientales”. Ou este outro mimo, da autoria do considerável escritor Barbey D’Aurévilly, ainda hoje adaptado ao cinema em França: “Em Victor Hugo, o talento é sobretudo o estilo… por aí, ele escapa ao triste destino de não ser mais do que um imitador de Eugène Sue.” Na literatura, na ciência, na filosofia, os desconchavos circulam, são aceites, são acarinhados, são promovidos e até duram, intactos, durante séculos. De aí, que se deva ter extrema cautela, quando se trate de mostrar respeito à “autoridade”. Todos os grandes acrescentadores de conhecimento foram grandes desrespeitadores da autoridade, mesmo da autoridade de verdadeiros gigantes. O cientista inglês, Thomas Henry Huxley, iniciador de uma família de homens invulgares, na ciência, na literatura e no pensamento, avisava-nos, nesta fórmula vigorosa: “A ciência comete um suicídio, quando adopta um credo” (veja-se, entre muitos outros, o caso do charlatão Lysenko, na União Soviética: as suas trapalhices foram erigidas em dogma pelo ignorante Staline). E o grande cientista Konrad Lorenz resumia, numa fórmula feliz, o que também foi o miolo das cogitações de Karl Popper, no seu seminal A Lógica do Pensamento Científico: “A verdade, em ciência, pode ser definida como a hipótese de trabalho melhor equipada para abrir caminho à hipótese seguinte e melhor.” Só os timoratos e débeis pensadores é que se agarram à sua “verdade”, que defendem com unhas e dentes, sempre com medo de uma nova hipótese de trabalho (não uma “verdade”), que venha destituir a sua. Os verdadeiros cientistas anseiam por essa nova hipótese, os falsos cientistas temem-na. O verdadeiro cientista quer andar para a frente, o falso quer ficar onde está.
Tenhamos, pois, em mente, que, mesmo os grandes se enganam: são mesmo esses que mais se enganam, porque mais se arriscam. O grande Alexandre Dumas disse, aludindo ao grande químico francês, Lavoisier, que tinha sido mandado por Marat para a guilhotina, que “a República não precisa de químicos”. E o grande Reformador da Igreja, Martinho Lutero, disse, dos judeus, isto que Hitler subscreveria, palavra por palavra: “Dever-se-ia ter arrasado as suas sinagogas, destruído as suas casas, confiscado os livros de orações, o Talmud e até os livros do Antigo Testamento, proibido que os Rabis ensinassem, obrigando-os a ganhar a vida por meio de trabalhos manuais penosos.” Antoine de Rivarol, o escrutinador e promotor da “universalidade da língua francesa” e o cunhador da inesquecível medalha: “A minha pátria é a língua francesa”, disse este mimo, falando da literatura inglesa: “A literatura inglesa não merece que lhe demos sequer uma olhadela”. O grande Bossuet, o maior orador da língua francesa, disse de sua justiça, sobre as mulheres: “Prova-se, pelas Escrituras, que as mulheres, que só têm como partilha o silêncio, não devem meter-se a ensinar.” E termino, por agora, este inventário de desconchavos, com este do grande Dostoiewsky: “Em país russo, não há imbecis; é o que nos distingue dos outros países.”
Em suma, caros leitores, o melhor é estarmos sempre preparados para só aceitarmos o que nos parecer que é aceitável e mandarmos para a sucata os ocasionais deslizes dos grandes, que admiramos e não deixaremos de admirar, só porque, de vez em quando, fizeram como Homero e dormitaram.”
Eugénio Lisboa, 17.01.2022