sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Vento do Espírito


Vento do Espírito

Senti passar um vento misterioso
Num torvelinho cósmico e profundo.
E me levou nos braços; e ansioso
Eu fui; e vi o Espírito do Mundo.

Todas cousas ermas, que irradiam
como um nocturno olhar inconsciente,
Luz de lágrima extinta, não sentiam
A trágica rajada, que somente

Meu coração crispava! Ó vento aéreo!
Vento de Exaltação e Profecia!
Vento que sopra, em ondas de mistério
E tanto me perturba e me extasia!

Estranho vento, em fúria, sem tocar
Na mais tenrinha flor! E assim agita
Todo o meu ser, em chamas, a exalar
Luz de Deus, luz de amor, luz infinita!

Vento que só encontras resistência, 
numa invisível sombra... Um arvoredo,
Ou bruta pedra, é como vaga essência;
E, para ti, eu sou como um penedo.

E na minha alma aflita, ó doido vento,
Bates, de noite; e um burburinho forte
A envolve, arrasta  e leva num momento;
E vai de vida em vida e morte em morte.

Vento que me levou, nem sei por onde,
Mas sei que fui; e, ao pé de mim, bem perto,
Vi, face a face,  a névoa a arder que esconde
O fantasma de Deus, sobre o deserto!

E vi também  a luz indefinida 
Que , nas trevas, se fez, esclarecendo
Meu coração, que voa, além da vida,
O seu peso de lágrimas perdendo.

E aquele grande vento transtornou 
Minha existência calma; e dor antiga
Meu rude e frágil corpo trespassou, 
Como a chuva nos andrajos de mendiga.

E fui num grande vento; e fui; e vi:
Vi a sombra de Deus. E, alvoroçado,
Deitei--me àquela sombra, e, em mim, senti
A terra em flor e o céu todo estrelado.
Teixeira de Pascoaes, in " As Sombras", Círculo de Leitores,, Março de 1973, pp.18,19

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