George Steiner. Que palavras um livro oculta, que silêncios um livro suplica
por Pedro Miranda
“Alguns dos topos fundamentais que perpassaram o pensamento e a obra de George Steiner podem encontrar-se, condensados, em um breve, mas luminoso ensaio, O silêncio dos livros (Gradiva, 2012), que assina com Michel Crépu, e que, um ano após a sua morte, nos permitem evocar o grande professor de humanidades e nos exortam à releitura da sua obra. Magistralmente paradoxal, a duas mãos, com a inconfundível voz de George Steiner, ressoa a clássico o renovado grito d' O Silêncio dos Livros, acrescido da resposta Esse Vício ainda impune, de Michel Crépu.
O exercício de Steiner procura desconstruir o livro e o autor; explica, expõe, desnuda o escritor e o exercício de autoridade
que este reclama para si sempre que escreve (só pelo facto de escrever) - “no
texto escrito (…) está presente um grau máximo de autoridade (…) O simples
facto de escrever, de lançar mão de uma transmissão escrita, significa
reivindicar para si o estatuto do discurso magistral, do canónico” -, chegando,
inclusive, neste perscrutar do literato e da (objectiva, pelo menos, conquanto
não completamente assumida/consciente) reivindicação, o Professor e leitor por
antonomásia, o crítico ilustríssimo, a um excerto ensimesmado, confessional,
tortuoso porque explicitamente torturado por um labirinto aparentemente sem
porta de saída, em que (se) coloca o problema (em voz alta) de até que ponto a
(sua) migração, apaixonada e fervorosa, para a literatura e a ficção (e como
evitá-la, seja por vocação, seja por ofício? Ou, porque não ainda, com uma
afeição transformada em vício?) - um personagem de Shakespeare pode, para
si, ser mais real que o António da Rua Direita - o tornar, potencialmente,
menos sensível ao aroma, mais do que isso, ao sofrimento, do mundo, em suma, a
radical questão de saber se as Humanidades humanizam - “enquanto professor,
alguém para quem a literatura, a filosofia, a música ou as artes são a
verdadeira substância da vida, como poderei eu exprimir a necessidade que sinto
de uma lucidez moral, consciente das necessidades humanas e da injustiça que
torna possível uma cultura a tal ponto elevada? As torres que nos isolam são
mais sólidas do que o marfim. Não sei de resposta satisfatória para este
problema”. O intelectual e suas inquietações. A cultura como necessidade
indispensável, mas como clarividência, não como paralisia psicológica (ou fuga
mundi), um perigo imanente a esta figura na descrição aqui proposta, face aos
males do mundo. A interrogação da Alemanha nazi sufragada por Heidegger ou o
fechar de olhos sartreano às atrocidades comunistas, são sinaléticas
impressivas dos cuidados redobrados a tomar (também/essencialmente) pelos
homens da cultura.
Ângulo diverso, perspectiva particularmente
curiosa e interessante: herdeiros de Atenas e Jerusalém, recebemos o maior
legado intelectual e ético das figuras de Sócrates e Jesus Cristo. Nenhum deles
escreveu, nenhum foi autor, nenhum foi publicado. Antes da escrita, muito
antes, a oralidade. A transmissão que cria tradição. A comunidade que se funda
na memória. A música, provavelmente, como verdadeira linguagem universal. A
eficácia retórica, em Sócrates, advinda de diálogos formulados, ritmados,
compassados por passeatas com arranques súbitos e paragens abruptas e onde o
estilo, a forma, mais enfática, por exemplo, era, por sinal, também, conteúdo;
a conclusão de diferentes questões, formuladas sapientemente, requeria
artificiosa oralidade, onde os gestos, os acenos, as exclamações eram tudo
menos inócuos. Em Jesus, as “parábolas concisas”, rigorosamente à conquista das
mentes, facilmente apre(e)ndidas, passadas de igual forma (oralmente). “Um
saber de cor (…) é também um saber do coração”. Os livros permitem comentários
sobre comentários, rodeiam e evitam a resposta imediata que a honestidade da
oralidade impõe. Os livros são, ainda, repositórios de saberes e conhecimentos
que estimulam a preguiça - não é preciso decorar, porque o repertório da
imensidão do que curamos saber está ali, na biblioteca, mesmo à mão - e o vazio
criado pela nova educação torna ausentes quaisquer referências. E, no entanto,
“podemos afirmar que tudo o que não aprendemos e não sabemos de cor (…) é
aquilo de que verdadeiramente não gostámos”.Denunciados ou examinados os perigos dos
livros, há, cá está o paradoxo, que resgatá-los. Sim, porque há quem lhes
queira mal. Os livros podem desaparecer. E isso é toda uma tragédia. Mas quem
poderia acabar com os livros? Os fundamentalistas - a quem apenas o livro
eleito, na versão autorizada, importa e há, mesmo, livros que convém perseguir,
proibir, queimar - e os censores - políticos, religiosos, etc. Os românticos e
radicais bucólicos, para os quais apenas a experiência é verde, face ao
cinzentismo dos livros (aqui é dado o exemplo de Goethe; Crepú observa, porém,
que Goethe nunca foi/seria lenhador…), os radicais que querem criar ex novo
precisando para isso de páginas em branco, para que nenhuma obra os ofusque,
atormente, limite, constranja, ou embarace…Há, finalmente, essas hordas
infantis que enchem as prateleiras de discos e cassetes piratas e desprezam,
segundo Crépu odeiam mesmo, o livro. O ar do tempo, a educação e a família do
tempo, fomentam essa ignorância - diagnóstico comum a duas mãos. A tecnologia
invadiu as casas, estantes povoadas de literatura em quartos adolescentes só em
filmes nostálgicos e, para mais, ameaça derradeira ainda que nada
insignificante, qualquer careta publica um livro enxameando os escaparates com
milhares de novos títulos anuais, mediocridade “que constitui talvez a maior
ameaça a pesar sobre o livro e sobre a sobrevivência das livrarias de qualidade
que precisam de espaço suficiente para armazenar as obras e poderem dar
respostas aos interesses e necessidades de todos, inclusivamente das minorias”.
Pedro Miranda , Jornali, 11.03.2021
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