sexta-feira, 7 de maio de 2021

A LÍNGUA PORTUGUESA (1)

A LÍNGUA PORTUGUESA

 Ao Nuno Pacheco, persistente e corajoso campeão, na aguerrida luta contra o Acordo Ortográfico, que tanto tem desfigurado a ortografia da língua portuguesa.

por Eugénio Lisboa
"Passou em 5 de Maio o Dia Mundial da Língua Portuguesa. Fui, com prazer, participar numa sessão de gravação de um programa que a Câmara de Oeiras em boa hora promoveu, para assinalar esse Dia. Tive o prazer de aí ter tido, como parceiro de conversa, o Dr. Rui Soares, grande autoridade internacional na área do Provérbio, e, como moderador inteligente, culto e dinâmico, o Dr. Mário José Silva. Tinha pensado em ali ler algumas homenagens prestadas à língua de Camões, ao longo dos séculos, por alguns poetas de Portugal e do Brasil. Porém o rumo que tomou a conversa não o proporcionou e quero, portanto, fazê-lo aqui.
A língua portuguesa, como todas as línguas vivas, tem evoluído, enriquecendo-se de novos vocábulos a que o progresso obriga e de novos enfoques e conotações que um novo contexto sugere. Os escritores, sobretudo os poetas, mas não só, acrescentam-na, com imaginação e com vigor, não só criando novo léxico como, também, como acima dissemos, usando palavras conhecidas, em contexto diferente e com sentido um pouco distante do usual, com efeitos inesperados. O poeta Paul Claudel dizia isto mesmo, numa formulação inconfundível: “Ce sont les mots de tous les jours et ce ne sont pas les mêmes” (“São as palavras de todos os dias e não são as mesmas.”) Quando Cesário Verde, num poema, se mostra embevecido por uma mulher “aromática e normal”, o adjectivo “normal” parece aqui um pouco frágil e deslocado para significar o que uma mulher possa ter de particularmente atraente: ninguém se lembraria de incluir, entre as seduções de uma mulher, a sua cinzenta “normalidade”. Simplesmente, para o Cesário tuberculoso e condenado a uma morte prematura, a mulher “normal”, isto é, saudável, isto é, “vigorosa”, reveste-se de suprema sedução. Ela era a vitalidade, a força que ele já não tinha e que, da força dela, se alimentava. Nada atrai tanto o frágil e vulnerável como o forte e saudável: o normal. Quem as leu, nunca esquecerá as páginas extraordinárias de Tolstoi, na sua pequena novela, A Morte de Ivan Ilitch, nas quais nos dá o protagonista, um idoso juiz, a morrer de cancro, já muito debilitado, mas a sentir-se todos os dias revigorado, quando um forte mujique lhe dava banho e o ajudava a cuidar-se, com os seus braços possantes: era como se a energia rude mujique se transmitisse, por milagre, ao pobre moribundo. A palavra “normal”, no verso célebre de Cesário, foi ali colocada com sábia pontaria, adquirindo um poderoso significado que não é o significado corrente e baço que lhe é dado por quem a usa.
Os poetas, os escritores em geral, em suma: os autores, são aqueles que aumentam a língua. Auctor era o título que os antigos romanos davam aos seus generais que acrescentavam o território, por conquista. Os verdadeiros escritores também aumentam o território da língua, de várias maneiras. Os três grandes acrescentadores da língua são o povo, as crianças e os escritores. Não os filólogos. O grande Anatole France, que merecidamente herdou o manto de Voltaire, escreveu estas belas palavras sobre os fazedores das línguas: “O povo faz bem as línguas. Fá-las imaginosas e claras, vivas e expressivas. Se fossem os sábios a fazê-las, seriam baças e pesadas.” O que é bem verdade. Conta-se que um dia no Porto, Camilo Castelo Branco ia por uma rua e viu uma vendedora, que era guapa de cima a baixo. Não resistiu a fazer-lhe um piropo. Camilo tinha, como se sabe, a cara picada das bexigas. A vendedora, ao ouvir o piropo atrevido, virou-se para ele e, fitando-o, disparou: “Cale-se, aí, seu cara de areia mijada!” Se isto não é fazer um uso criativo da língua, criando espontaneamente uma imagem inesquecível, vou ali e já venho. E são inúmeros os dizeres populares magnificamente expressivos e contundentes: “Meter o Rossio na Rua da Betesga”; “Diz o roto ao nu”; “Chove a potes”; “Nunca mais é sábado”; “Ficar a ver navios”; “Tirar o cavalinho da chuva”; “Quem tem boca vai a Roma”; “À sombra da bananeira”; “Engolir sapos”; “Dor de cotovelo”, etc. Poderia citar para cima de uma centena de expressões populares tão vivas e imaginosas como estas.
Por fim, as crianças: há quem tenha coleccionado dizeres espontâneos de crianças, revelando uma imaginação associativa prodigiosa e invejável. Dizia um poeta que todas as crianças têm génio, mas que os adultos acabam por fazê-lo embotar, por não o reconhecerem e até o travarem. Um só exemplo: uma criança a quem o pai deu, pela primeira vez, uma bebida gasosa, reagiu com estas palavras: “Sabe a pé dormente…”, assim construindo uma sinestesia não indigna da que fez Rimbaud, no célebre soneto das vogais coloridas.
A língua é, muitas vezes, a única pátria possível para os que já não têm a sua pátria de origem. O escritor francês Antoine de Rivarol (1753 – 1801), monárquico em tempos de revolução, teve de fugir de França, para salvar a vida. Como tantos outros escritores, andou por vários países, mas nunca mais regressou à sua pátria, que se afundara no Terror. Sem pátria, agarrou-se à única que lhe restava e gravou, para a posteridade, esta cintilante medalha: “A minha pátria é a língua francesa.” Rivarol foi um notável pensador aforista: embora conotado à direita, deixou aforismos que qualquer aforista de esquerda teria reivindicado. Por exemplo: “É preciso haver fome de pobreza para se gozar bem de riqueza.” A sua intensa assunção da língua, como pátria substituta, teve herdeiros: Fernando Pessoa (“A minha pátria é a língua portuguesa”); Hermann Hesse (1877 – 1962), grande escritor alemão fugido ao nazismo e tendo-se fixado na Suíça, escreveu: “A minha pátria é a língua alemã”; e Albert Camus (1913 – 1960), tendo perdido a sua Argélia sem completamente ter ganho a França, assim resumiu a solução para o conflito que o dilacerava: “Tenho uma pátria: a língua francesa.”
Fernando Pessoa viveu sempre em Portugal, depois de ter crescido linguística e culturalmente na inglesa Durban, o que o levaria a sentir-se sempre um pouco estranho, no meio de portugueses, que não eram bem como ele: caracterizou-os com acutilância de quem os via de fora, chegando mesmo a achá-los cómicos. Sem pátria que se dissesse, agarrou-se ao português deslumbrante de Vieira e tornou-se poeta português. Mas Pessoa dominava de facto duas línguas e foi o conhecimento profundo do inglês que o ajudou a melhor aprofundar o português. A comparação de duas línguas fomenta o melhor conhecimento de ambas. Já o grande Goethe o dissera: “Quem não conhece línguas estrangeiras, não sabe nada sobre a própria.” Os escritores portugueses que mais contribuíram para a modernização do português foram os que andaram lá por fora: Garrett, Eça de Queirós, Fernando Pessoa, Jorge de Sena.
Darei agora alguns exemplos de homenagens prestadas por autores de língua portuguesa à língua que lhes foi pátria e casa. Darei, por agora, alguns, deixando para o meu próximo “post” o resto.

ANTÓNIO FERREIRA

(1528 – 1569)

Floresça, fale, cante, ouça-se e viva

A Portuguesa Língua e já onde for

Senhora vá de si soberba e altiva.

Se téqui esteve baixa e sem louvor

Culpa é dos que mal a executaram.

Carta a Pedro de Andrade Caminha

(Excerto)

OLAVO BILAC

(1865 – 1918)

LÍNGUA PORTUGUESA

´´Ultima flor do Lácio, inculta e bela,

És, a um tempo, flor e sepultura:

Ouro nativo que, na ganga impura

A bruta mina entre os cascalhos vela…

 

Amo-te assim, desconhecida e obscura,

Tuba de alto clangor, lira singela,

Que tens o trom e o silvo da procela

E o arrolo da saudade e da ternura.

 

Amo o teu viço agreste e o teu aroma

De virgens selvas e de oceano largo!

Amo-te ó rude e doloroso idioma,

 

Em que da voz materna ouvi: “meu filho”!

E em que Camões chorou, no exílio amargo,

O génio sem ventura e o amor sem brilho.

TERESA RITA LOPES

(1937 -     )

PALAVRAR

As crianças começam a chilrear palavras

antes de saber falar.

Saboreiam-nas como a mama das mães.

Ficou-me na língua desde então

 o gosto das palavras.

O dicionário não regista o termo

- ignorância sua!

O neologismo é do Pessoa.

Palavrar faz crescer, dilatar as papilas,

apetecer comer o mundo,

apura o paladar do ser que somos.

Sempre os homens, através dos tempos,

precisaram de palavras

a falar ou a cantar,

às vezes a rimar,

para pôr as palavras a namorar

umas com as outras!

A Natália exclamou que “a poesia é para se comer!”

É verdade que a poesia é o modo mais cristalino

ou mais em fogo

de palavrar!

O Miguel Torga elogiou a pobreza franciscana

da nossa língua:

 “Para pedir pão serve às maravilhas!”

P’ró que lhe havia de dar~

 a sua mania do parco e do pouco!

A nossa língua é o mais suculento manjar imaginável!

Por mais pobres que nos façam ser

os ricos que nos roubam

podemo-nos gabar de ter para falar e escrever

e comer´

e até amar

uma das mais esplêndidas línguas do mundo!

            (Inédito)

FERNANDO PESSOA

(1888 – 1935)

O português é (1) a mais rica e mais complexa das línguas românicas, (2) uma das cinco línguas imperiais, (3) é falada, senão por muita gente, pelo menos do Oriente ao Ocidente, ao contrário de todas as línguas menos o inglês, e, até certo ponto o francês, (4) é fácil de aprender a quem saiba já espanhol (castelhano) e, em certo modo, italiano – isto é, não é uma língua isolada, (5) é a língua falada num grande país crescente – o Brasil (podia ser falada de Oriente a Ocidente e não ser assim falada por uma grande nação).

(in A Língua Portuguesa)

Nota: no próximo post, incluiremos testemunhos de Afonso Lopes Vieira, David Mourão- Ferreira, Teresa Rita Lopes (outro inédito) e Eugénio Lisboa.
Eugénio Lisboa, Maio de 2021

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