O que subjaz à crise das humanidades, no plano político, social ou psicológico, é a erosão da religião organizada a que de início me referi. A literacia tradicional e a cultura e tipo de ensino a que deu origem assentavam , na realidade, em pressupostos e valores teológicos. À medida que a nossa civilização passa a evoluir à deriva, a literacia torna-se incerta. Como o chamado «pós-modernismo» proclama, « vale tudo» . O que não significa que deixaremos de produzir e ler livros, alguns dos quais estimáveis, de visitar museus ou de construir salas de concertos. Continuaremos, evidentemente, a fazer tudo isso. As audiências talvez cresçam. É muito o que se pode ler na Internet, ou admirar em reprodução holográfica. Porque não faríamos um download da Missa Solemnis? O pessimismo tem um veio snob. O que se passa é que semelhantes fontes de alegria, e os esforços que aceder-lhes implica, terão de competir, nos termos de uma escala comum de prestígio e apoios económicos, com uma diversão de massa da espécie mais brutal e ensurdecedora, e com o desporto ( a teodiceia real é a do tiro à baliza). A livraria séria ver-se-á em concorrência , em condições absurdas e viciadas, com o grande armazém pornográfico vizinho. Mandarins e artistas cada vez mais esporádicos multiplicarão esforços visando conquistar o estrelato no âmbito dos meios de comunicação de massa. Serão cada vez mais difíceis de alcançar as austeras condições auspiciosas da intimidade e do silêncio, bem como da impopularidade, das quais tantas vezes dependem o pensamento e a criação original. A democracia desconfia da solidão. É possível que os critérios do supermercado comecem a aplicar até aos casos de Platão, Goethe ou Proust , o galicismo cínico e arrasador: ce n'est que de la littérature."
George Steiner, in Os livros que não escrevi, Gradiva Publicações, S. A., pp. 216,217,218
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