sábado, 6 de fevereiro de 2021

O tempo tinha recuperado a memória

As palavras rebentam nas recordações as correntes de intangíveis sinais.
Eduardo Bettencourt Pinto

 

"(...) E , nesse momento, deixou de ter um corpo vivido , mas antes um corpo antigo e sentido que retomava as formas perdidas na memória do coração.
Uma lengalenga aflorou-lhe aos lábios e, numa litania ímpar e familiar, foi saudando toda aquela grandiosidade que a rodeava e que reconhecia como um ponto indelével do seu mapa genético.
Não era o rio que a esperava, mas uma casa que a magnetizava totalmente. E a pressa de lá chegar impelia-a em passos rápidos e determinados.
A brisa da manhã fazia-a deslizar, como que planando por cima da terra batida. Eram os pedais da bicicleta alada da infância que acorriam, aligeirando-lhe o percurso.
E de repente avistou a casa. Era de novo o chalé e era de novo aquele estremecimento profundo agitando todo o seu corpo.
Parou e deu tréguas aquela intempérie que a invadia e que parecia asfixiá-la. Então, o aroma das flores chegou resplandecente de prazer e automaticamente identificou cada odor.
Quando avançou para a porta de entrada, já estava em paz e de uma serenidade total. Sabia que viria a recuperar qualquer coisa que lhe pertencia. Sentia-se a chegar a casa, embora isso lhe parecesse incompreensível.
Bateu à porta e, quando se preparava para entrar, um cheiro peculiar e único impregnou-a totalmente. E antes que se voltasse, escutou aquela voz…
Reconhecê-la-ia no meio de milhares de vozes. Ficara gravada num canto recôndito que só ela conhecia. Era ele e apenas ele que  dizia:
- Bom dia . Não sei se me está  a procurar há muito tempo porque saí cedo para a rega matinal. Peço desculpa, mas não costumo receber visitas. São poucos os amigos que aqui vêm. Queira fazer o favor de entrar.
Entrou sem se voltar e dirigiu-se à sala. O tempo tinha recuperado a memória e chamara-a.
E, então, olhou-o e viu o homem, o menino, o rapaz, o amor de uma vida amputada.
Antero estava ali e trazia ainda o cheiro da terra. Antero, o companheiro, o amigo , o amante perdido. E o abraço foi tão forte e demorado que se esqueceram de tudo e de todos.
Quando Genoveva os encontrou, estavam sentados num banco, no jardim das traseiras do chalé, com as mãos entrelaçadas, tecendo um mudo diálogo que só os olhos e o coração decifravam."
                                                          Praia da Rocha, 10 de Junho de 2008
Maria José Vieira de Sousa, in O Lugar, memórias de um romance, Junho de 2008, pp.113,114

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