por Eugénio Lisboa
Ter-se um
gato, como companhia, o dia inteiro, é um presente dos deuses. O grande Dickens
sabia isso, quando afirmava que “there is no greater gift than the love of a
cat”. O gato é um animal bonito, elegantíssimo, inteligente e extremamente
inventivo. Está sempre a ter ideias, embora muitas delas francamente turbulentas
e algo destrutivas. E, ao contrário do que dizem os ignorantes (que nunca
tiveram gatos ou os tiveram e não lhes prestaram a devida atenção), o gato, se
bem tratado e acarinhado, torna-se não só nosso amigo, como se torna até um
amigo fiel e assíduo, sendo de opinião que é mal empregado todo o tempo que lhe
não dediquemos, embora ele necessite de algum tempo para retiro, meditação e
soneca. De facto, ele só não está connosco, quando DECIDE que tem, ELE, de
fazer coisas mais importantes, como, por exemplo, partir um prato ou um copo ou
um bonito objecto de arte que seja frágil e esteja mesmo a pedi-las. Ou, como
já dissemos, dormir. Um gato pode ser muito nosso amigo, mas recusará
terminantemente ser nosso escravo: o seu orgulho felino nunca lhe permitiria
esse abaixamento, que ele vê, com desprezo, praticado pelo cão, nunca elevado
ao estatuto de deus, pelos egípcios. Mas não lhe passa pela cabeça que os
humanos tenham o mesmo comportamento orgulhoso. Quando lhe apetece – ao gato –
saltar-nos para o colo ou para as costas, dificilmente aceita que recusemos.
Ele SABE quando quer estar sozinho, mas não aceita que nós queiramos estar
sozinhos, quando a ELE lhe APETECE estar connosco. Isto pode parecer estranho a
um humano, mas o gato percebe-o perfeitamente. O homem foi feito para servir o
gato e não o gato para servir o homem: um deus manda e não é mandado! Isto está
inscrito no ADN dos felinos de salão.
Agora,
pergunto: que fazer, numa situação destas? A resposta imediata do ignoramus
seria correr com o gato e retomar a escrita. Mas, quem todo o dia ouve o seu
afectuoso gato recordar-lhe que, no tempo dos faraós, ELE tinha o estatuto de
um deus e como tal era venerado, só lhe resta vergar-se e ajudá-lo a recuperar
a eminência perdida. Sim, porque os apelos do bichano são tão pungentes que,
diante deles, pergunta-se: QUE FAZER? (assim perguntava Lenine, num livro
célebre, mas com assunto de bem menor importância do que o estatuto do gato!)
Fica-se dilacerantemente perplexo. Sim, que vale um poema (mesmo sublime e
longo), um romance, um ensaio ou um verbete de um diário, comparados com o amor
de um gato? Se Camões gostasse de gatos e tivesse um gato, quando naufragou, na
foz do Mecom, que acham Vocês que ele salvaria: o gato ou os Lusíadas? Qualquer genuíno amante de
gatos conhece a resposta. Por mim, sacrifico sempre a escrita ao afecto de um
gato. Não troco esse afecto por nenhum pífio triunfo literário. Posso mesmo
afirmar, com orgulho, que os meus três últimos felinos – Jim, Secotine e Ísis –
contribuíram decisivamente para diminuir a dimensão da minha bibliografia
activa. Mas que importância tem isso?
Que vale a mais aparatosa bibliografia, em face do elegante esplendor de
um gato?
P. S.
confirmativo: escrever o pequeno texto acima consumiu-me, devido à presença da
Ísis, o triplo do tempo que me levaria a fazê-lo, se ela não estivesse presente.
18.01.2021
Eugénio Lisboa, em Crónica publicada no blog De Rerum Natura.
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