Cormac McCarthy. “Da violência de que somos feitos"
por Ricardo Gomes
por Ricardo Gomes
"Meridiano de Sangue” é o velho oeste americano sem heróis infalíveis, vilões mortos num duelo ao fim da tarde ou banda sonora de Morricone. O magnum opus de Cormac McCarthy é um western que faria John Wayne ou Clint Eastwood tremer das pernas.
Os aventureiros, os degenerados, os foragidos, os peregrinos, os esperançosos ou os sem futuro. Para todos estes o ponteiro da bússola aponta outro norte - o deserto. Nele se podem apagar, existir fora da lei dos Homens e de Deus. Como pode a lei ser cobertor suficiente nas “vastas extensões clangorosas, que uma ordem arrancara ao seio da noite absoluta, qual reino demoníaco evocado do nada”?
Foge de casa o rapaz, é somente este o seu nome, para onde há-de ir saberão a cada passo os pés. Tropeça do Tennessee para o deserto do sudoeste americano e sabe Deus quem lhe gizou o caminho, porque nem ambição ou fé deram ordem aos pés. Aconteceu somente. Como lhe aconteceu unir-se ao bando de John Glanton, porque no deserto ninguém sobrevive a sós e sempre dá direito a ração, montada e desígnio.
Do périplo deste bando de caçadores de escalpes pelo território bravio do sudoeste se escreve Meridiano de Sangue, o primeiro western do americano Cormac McCarthy. Nascido em 1933 em Rhode Island, mas criado no Tennessee, começa a sua carreira literária em 1965, inserido na tradição literária sulista de William Faulkner ou Flannery O’Connor. Meridiano de Sangue, publicado em 1985, é vagamente baseado no relato de Samuel Chamberlain, veterano da guerra entre o México e os Estados Unidos. Este descreve em “My Confession: The Recollections of a Rogue”, escrito em meados do século XIX, os tempos que passou com Glanton e o seu bando, incluindo o juiz Holden, na raia entre o Texas e o México.
A este deserto confluem os vários tempos e variedades da sua existência. Sobre as ruínas das velhas civilizações desaparecidas enfrentam-se as que ainda subsistem. Nas terras dos desaparecidos anasazi cavalgam os últimos dos nativos, expulsos dos seus ancestrais domínios pelo engordar da civilização americana, os vizinhos mexicanos e os destroços de uma guerra que se travou por uma fronteira de pó e relâmpago. Vagueiam nestas terras “cavaleiros espectrais, pálidos de poeira, anónimos no calor crenulado (...) guiados pelo acaso, primitivos, provisórios, despidos de ordem. Quais seres concitados do seio da rocha absoluta e, sem nome nem nada que os distinguisse das suas próprias miragens, postos a vaguear, vorazes e mudos como gorgónas a percorrer em passo trôpego ermos brutais da Gondwana, num tempo em que não havia nomenclatura e em que cada um era todos.”
Digladiam-se os vivos por sobre ossos feitos pó, lutando por uma medida da existência - resistir mais um dia. Glanton e os seus camaradas matam para que lhes paguem pelos escalpes de índio que consigam reunir. Sossegam os corpos no fim de uma refrega “a poeira estancava o sangue nas cabeças molhadas e nuas dos escalpados, que, com a orla do cabelo abaixo das feridas e tonsurados até ao osso, jaziam agora como monges mutilados e nus no pó ensopado de sangue, e por toda a parte os moribundos gemiam e balbuciavam e os cavalos caídos soltavam urros.”
As forças que aqui se enfrentam não são entidades abstractas, não é batalha no céu em que chocam as armas do bem e do mal. É homem a homem, cá em baixo, na terra. Nas noites calmas, em que o bando não persegue nem é perseguido, faz-se roda em torno do fogo e discutem-se as coisas de Deus e dos Homens. Mais do que uma pregação, o juiz Holden lidera um diálogo platónico. Esta “criatura enorme e glabra”, “capaz de dançar com mais elegância que o próprio diabo”, tocador de rabeca e poliglota é a figura central do romance.
Holden não é um desses “homens que acreditam que os segredos do mundo estão para sempre ocultos”. A esses “a superstição impede-os de levantar voo.” É, pelo contrário, “o homem que chama a si a tarefa de destrinçar o fio de ordem na vasta tapeçaria”, capaz de “tomar o mundo a seu cargo”. O Homem que não possua “esse rasgo de ousadia nunca conseguirá achar o trilho para ditar os termos do seu próprio destino”. O juiz é o Übermensch de Nietzsche, o super-homem, capaz de reconhecer a existência desses grilhões a que a humanidade se agarrou, essas morais ultrapassadas que agacham o homem a uma condição infra-humana. Deles liberto, vê mais além. O seu método, na esteira dos velhos gnósticos, é procurar Deus na sua própria experiência - “Tudo o que existe na criação sem o meu conhecimento, existe sem o meu consentimento”. O psicólogo Julian Jaynes escreve, a propósito da consciência, que esta é “a história que o cérebro conta a si mesmo”. Não é Deus que mente. São os humanos que são febris e sonham. Somos nós mesmos que inventámos a impostura em que nos enredamos. O juiz é um arqueólogo a esventrar o chão do sonho em busca de um substracto, dessa prova de existência que estará por baixo.
A sua conclusão última - “A guerra é Deus”. De Deus procede o mundo e o motor dos eventos de que o tempo é feito. Só a guerra desfaz o nó górdio da existência, escolhendo, entre os que se enfrentam em duelo, o que há-de ficar estendido e o que há-de seguir adiante. Eis o grande diferendo, o único a que importa dar resposta, quem há-de morrer e quem há-de viver. A guerra nada tem a ver com moralidade, não se pesam valores. A guerra é supra-humana, é investimento absoluto, “subalterniza todas as escolhas menores, morais, espirituais ou naturais.”
Entre os que o ouvem estão homens que são como os animais de Georges Bataille, seres pertencentes a um espaço de continuidade em que “não há transcendência do animal com o animal comido”, incapazes de se distinguirem uns dos outros como “o açor que come a galinha não a distingue claramente de si próprio”. Comportam-se como “o animal que aceitava a imanência em que estava mergulhado sem aparente protesto”. O rapaz vive num estado intermédio, capaz de sentir “uma espécie de horror impotente” perante o espectáculo da existência, rejeitando ao mesmo tempo mundividência do juiz Holden, da qual pressente o mesmo horror.
Desfaz-se este bando, morrem uns, desaparecem outros. O rapaz prossegue solitário. Guia-se pela sua própria vontade, mas nunca conseguirá escapar à ubiquidade da violência. Entre um “bando de penitentes que jazia massacrado a cutiladas entre as pedras (...) caídos em volta da cruz tombada”, o rapaz encontra uma velha. No meio da desolação e morte, oferece-lhe ao ouvido conforto e auxílio, para finalmente descobrir que “não passava de um invólucro ressequido e estava morta naquele lugar há já muitos anos”. O horror continua.
Rapaz e juiz vão voltar a cruzar-se. Como outrora Jesus, tentado noutro deserto por outro diabo, renega-lhe as ideias, foge-lhe das tentações. Para que se salvasse, faltou ao rapaz o Pai que Jesus tinha.
Que palavras são capazes de coser uma ideia de violência? É na escolha destas que se revela a prosa superlativa deste escritor, de implacável veemência e valor imagético. É impossível que não nos desça ao osso o temor de ver cavalgar na nossa direcção “uma legião de seres horríveis, centenas deles, seminus ou ataviados com trajos áticos ou bíblicos ou enroupados com adereços saindo de um sonho febril (...), i, de cartola e outros de guarda-sol e outro de meias brancas e um véu de noiva maculado de sangue (...) e um outro de sobrecasaca com os botões voltados para as costas e aparte disso nu e outro com a armadura de um conquistador espanhol (...)”. E que dizer sobre a paisagem, nunca aqui transformada em verbo de encher, muito menos música de fundo apenas, porque do deserto não se pode dizer que caiba dentro de uma caixa de elevador. Descreve McCarthy o espaço com tal vivacidade e bojo que espanta que possam estar contidas entre as folhas de um livro essas “tempestades na lonjura, tão distantes que se conseguiam ouvir, os relâmpagos silenciosos a rebrilhar como lençóis ao vento e o espinhaço acerado e negro da cadeia montanhosa a bruxulear e logo sugado novamente para o âmago das trevas.”
Mais do que pelas palavras com que lavra os seus livros, Cormac McCarthy distingue-se por uma força subterrânea, a agudez do arado com que destapa os lugares onde se escondem os homens e todos os seus aspectos, dos mais benévolos aos mais atrozes. Este deserto em que caminhamos “exige-nos um coração magnânimo, mas é também (...) um lugar vazio. É duro, é árido. Possui a própria natureza da pedra”. Salvam-se estes arados capazes de lavrar na rocha. "Ricardo Gomes, Jornal i, 11.11.2020
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