Ímpeto
No cais deserto onde embarquei outrora,
Sonho agora
Outra aventura igual.
Fui Portugal
Na minha meninice.
Quem diz que já não posso
Rezar um padre-nosso
E partir em seu nome na velhice?
Miguel Torga, Diário XIV, p1422
Neste domingo , 17 de Janeiro de 2021, evocamos um grande poeta português, Miguel Torga , falecido a 17 de Janeiro de 1995. Este poema escreveu-o dez anos antes da sua morte, sendo a entrada do seu Diário desse dia.
A sua escrita marcou-me profundamente, de tal modo que, enquanto estudante universitária, tinha como objectivo acabar o curso com uma tese sobre Miguel Torga. Nesse tempo , Miguel Torga era, além de poeta e de notável prosador, um médico otorrinolaringologista, radicado em Coimbra. Dele conhecia toda o obra publicada e a mulher, Andrée Crabbé Rocha, professora na minha Faculdade de Letras, em Lisboa. Nunca o conheci pessoalmente. Fiquei, sim, fascinada pela sua escrita que revisito com encanto redobrado até hoje. As minhas estantes exibem ostensiva e provocatoriamente a sua obra completa.
Ao tentar organizar esta habitual rubrica musical, foi-me impossível não assinalar a data em que se perdeu mais um homem que procurou incessantemente o redentor caminho da Luz, semeando sempre iluminados poemas, telúricos contos e um gigantesco Diário. Num belo artigo sobre Miguel Torga , Eugénio Lisboa afirma o seguinte: "Como todos os grandes escritores, Miguel Torga acolheu e acarinhou, dentro de si, um mundo de contradições. Lega-nos uma vasta obra feita de palavras apetecidamente trabalhadas, ao mesmo tempo que nota, poucos anos antes de morrer, que “sempre a experiência [lhe] ensinou que os momentos mais significativos da nossa condição, por embargo ou pudor, são mudos”. Dito de outro modo, o cultivo continuado e apaixonado do verbo levou-o à descoberta do valor insigne do silêncio. Por outro lado, tendo passado toda uma vida a comunicar com o leitor, em prosa e em verso, conclui, numa anotação do seu último volume do Diário (com data de 10.9.1991), que: “Ninguém sabe nada de ninguém. Morremos inéditos. Tanto que tenho dito de mim, por palavras e obras, e pasmo diariamente diante da incompreensão dos mais íntimos. Foi inútil e inglório todo o meu esforço para ser transparente aos olhos do mundo. (...) Fiquei a ser, não o poeta que realmente sou, mas o monstro que me inventaram.” Ou ainda, e de forma mais sucinta e acutilante: “Vamos para a sepultura secretos como viemos. E sempre a fazer, laica ou religiosamente, sinceras confissões.” Inutilidade de toda a escrita? Futilidade de toda a intervenção? Conclusão final – pessimista – de um escritor que arriscou a liberdade na luta pelo ideal de uma pátria a viver em democracia? É verdade que, no mesmo Diário, e em data muito próxima, Torga regista isto: “Afirmei recentemente que o meu verdadeiro rosto, presente ou futuro, está nos livros que escrevi.” Mas que “verdadeiro rosto” se é, como ele próprio insinua, mais do que provável que o irão desfigurar? Esta obsessão relativa ao indecifrado segredo que todos nós – e em especial, ele, Torga – levamos para o túmulo irriga-lhe, de resto, as páginas do último volume do Diário. Noutro ponto, volta à carga, com ênfase reveladora: “E cada novo livro que publico”, sublinha ele, “é apenas mais um S.O.S. que, por descargo de consciência, lanço engarrafado ao mar das montras. Se o embrulho for encontrado em qualquer praia por alguém, e a mensagem lida e entendida, óptimo. Se não for, paciência. Nunca as nossas inquietações e angústias podem ser inteiramente partilhadas. Ao fim e ao cabo, todos vivemos e morremos em segredo. O mais profundo e significativo de nós em nenhuma circunstância vem à luz do solo. Principalmente ao bico da pena dos que mais se explicam e confessam mascarados de penitentes, e são quase sempre mestres consumados do disfarce. Santos Agostinhos há poucos.” A inculcação do número reduzido de Santos Agostinhos, isto é, de confessados dilacerantemente sinceros, aliados à verificação assumida de que “o mais profundo de nós em nenhuma circunstância vem à luz do sol” [sublinhado nosso], leva à conclusão não demasiado abusiva de que o autor de Bichos se não inclui entre os pares do autor de A Cidade de Deus. "
Miguel Torga morreu a 17 de Janeiro de 1995, às 12h e 33m, no Instituto de Oncologia, em Coimbra. No dia seguinte, foi sepultado em campa rasa no cemitério de S. Martinho de Anta. Passam, hoje, 26 anos sobre a sua morte.
Montserrat Caballe pôde rezar, em vida, um sentido padre-nosso. Ei-la numa magnifica interpretação de Padre Nuestro, música composta por Jose María Cano (MECANO) para o Encontro Mundial de las Familias, celebrado em Valência, Espanha, em 8 de Julho de 2006.
Miguel Torga foi galardoado com vários prémios . Em 1989, recebeu o Prémio Camões, sendo o primeiro autor a receber o mais importante galardão literário da língua portuguesa. O prémio foi entregue em Ponta Delgada, no âmbito das comemorações do 10 de Junho, numa cerimónia presidida pelo Presidente da República, Mário Soares. No dia 2 de Junho, foi-lhe atribuída a condecoração de Oficial na Ordem das Artes e Letras, da República Francesa.
Ponta Delgada, 10 de Junho de 1989
"Uma vida longa dá para tudo. Para se nascer obscuramente em Trás-os-Montes, mourejar adolescente em Terras de Santa Cruz, percorrer, solidário, na idade adulta, os actuais países lusófonos em luta pela independência, visitar, alanceado, na velhice, o que resta do Oriente português, e receber agora, nestes patrícios e paradisíacos Açores, um prémio sob a égide de Camões. Nos intervalos, ser cidadão a tempo inteiro, com profissão tributada e deveres cívicos assumidos, e poeta rebelde, cioso da sua liberdade de criador, numa época atribulada, de guerras, tiranias políticas, campos de concentração, terrorismo, bombas atómicas e outros flagelos […]"
Miguel Torga ,(Diário XV, 1990)Eis um registo sobre a vida e obra de Miguel Torga, com a análise despretensiosa e reveladora do Pe. Augusto Cabral.
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