Escritores e os seus gatos
Por Marcelo Moutinho
"T.S. Elliot escreveu um livro inteiro sobre eles,
que são protagonistas de vários contos de Edgar Allan Poe e de três poemas no clássico
“As flores do mal”, de Charles Baudelaire. Truman Capote, Anton Tchecov, Lewis
Carrol, W.B. Yeats, Jorge Luis Borges e Ezra Pound também viveram cercados por
esses animais tão queridos quanto odiados. A exemplo de Ernest Hemingway, que
chegou a ter cinquenta na sua propriedade da Ilha de Key West, nos EUA. A lista parece
interminável: Aldous Huxley, Victor Hugo, Herman Hesse, H. P. Lovecraft,
Guimarães Rosa, Mark Twain, Honoré de Balzac, La Fontaine, Ferreira Gullar,
Lord Byron, William Faulkner, Raymond Chandler, Jean-Paul Sartre, Carlos
Drummond de Andrade, Mia Couto, Julio Cortazar, Stephen King. Mas, afinal, que
tipo de afecto une tão intensamente os escritores aos gatos?
Truman Capote |
A liberdade, afirmam alguns. A discrição, ponderam
outros. “Gosto de gatos porque eles são elegantes e silenciosos, e têm efeito
decorativo; uns leõezinhos razoavelmente dóceis, andando pela casa”, conta
Patricia Highsmith no ensaio que dedicou aos felinos. Eu, que convivo com eles
há cinco anos, diria que uma resposta concreta é improvável. E que o amor que
se revelam capazes de acender deriva de um tanto de coisas, muitas delas
indecifráveis. Assim como os gatos são.
Mila, a minha gata, é silenciosa a maior parte do
tempo. Quando quer atenção, ou comida, arranha o pé da cama ou simplesmente
mia. “Como todas as criaturas puras, os gatos são práticos”, já disse William
S. Burroughs. A relativa independência evita a necessidade permanente de
atenção, embora isso não deva ser confundido com indiferença (as consequências
seriam terríveis).
Além disso, gatos dormem muito, o que garante a
placidez imprescindível ao ofício da escrita. Charles Bukowski admirava-os
justamente pela capacidade de acumular até 20 horas de sono por dia, “sem
hesitação e sem remorsos”.
“Os gatos oferecem para o escritor algo que os
outros humanos não conseguem: companhia que não é exigente nem intrometida, que
é tão tranquila e em constante transformação quanto um mar plácido que mal se
move”, observa Patricia Highsmith. São, ainda, implicantes e vaidosos. Traços inconfundíveis,
apesar de nem sempre confessáveis, também daqueles que rendem suas horas à
escrita.
Ao perceber que uma pessoa não quer a sua companhia,
o gato se apressa em forçar uma aproximação travessa, esfregando-se nas pernas
do incauto ou pulando para o colo. Em contrapartida, desdenha por simples
diversão quem se achega trazendo carinhos. “O gato não é humilde”, sintetiza
Lygia Fagundes Telles, outra amante dos felinos.
Pablo Neruda chamava os gatos de “pequenos
imperadores sem orbe”, e num de seus poemas confessou: “Tudo sei, a vida e o
seu arquipélago, / o mar e a cidade incalculável, / a botânica / o gineceu com
os seus extravios, / o pôr e o menos da matemática, / os funis vulcânicos do
mundo, / a casca irreal do crocodilo, (…) / mas não posso decifrar um gato”.
Talvez, no fundo, a paixão dos escritores pelos
gatos se defina nessa afeição pelo que é incompreensível. “O gato, que nunca
leu Kant, é possivelmente um animal metafísico”, comentou certa vez Machado de
Assis.
Quando esbarro meus olhos nos olhos da Mila – fixos, firmes, enigmáticos
-, a frase ecoa, fazendo vibrar notas sempre novas, sempre originais. Mas
esqueçamos por um segundo todo o mistério. Se como disse Patricia Highsmith, “o
gato faz de um lar, um lar”, Mila é a minha casa. E isso basta."
Marcelo Moutinho, Crónicas, Site Marcelo Moutinho ( escritor e jornalista brasileiro)
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