uma genial oficina
por Eugénio Lisboa
Be not affraid of greatness
Shakespeare
"António Cabrita publicou na revista Caliban, de 14 de Novembro de 2016, um notável e justiceiro artigo dedicado a uma das mais fascinantes figuras de artista do século XX português: João Pedro Grabato Dias, heterónimo poético do pintor António Quadros e ainda heterónimo de outros poetas, como Frey Ioannes Garabatus e Mutimati Barnabé João.
Pintor,
poeta, professor (de altíssimo quilate), ceramista, arquitecto (singularmente
inovador), apicultor, agrónomo, artista gráfico, construtor naval, nas horas
vagas, descobridor e divulgador da obra de Rosa Ramalho, este verdadeiro homem
da Renascença, como, muito adequadamente, lhe chama António Cabrita, como ser
uma das mais ricas, complexas e bem adestradas figuras do nosso mundo cultural
– e não só! – é também uma das menos frequentemente citadas, quando se trata de
ressalvar um reduzido punhado de eminentes poetas ou de artistas plásticos de
relevo. E, no entanto, comparados com ele, a maior parte dos nossos festejados
poetas não passam de canhestros aprendizes de feiticeiro. Que a grandeza de
Grabato seja por alguns reconhecida mas cuidadosamente não promovida nem
divulgada diz muito da pequenez do nosso mundo cultural (faça-se aqui uma
ressalva para a grande actriz Maria do Céu Guerra que, com enorme empenho e
arte, tem divulgado alguns aspectos da poesia de Grabato Dias). Observava, com
subtil e certeira ironia, o grande ensaísta Daniel Boorstin que “alguns nascem
grandes, outros ascendem à grandeza e outros contratam um bom oficial de
relações públicas”. Quantas reputações, entre nós, se não fazem nos escritórios
de esforçados agentes de relações públicas! Aí, o que menos conta é o mérito
real. Não vou citar nomes: são demasiado conhecidos, ainda que minuciosamente
protegidos. A verdadeira grandeza quase sempre assusta e fomenta, rapidamente, a
reacção corporativa dos falsos grandes. Dizia o grande biólogo francês, Jean
Rostand, que é também um notabilíssimo aforista na língua de Chamfort, que “a
grandeza, para se fazer reconhecer, deve, frequentemente, imitar a verdadeira
grandeza”. Dura verdade, mas também muitas vezes irreconciliável com
temperamentos orgulhosos e reclusos de homens como Grabato Dias. A estes,
resta-lhes, como único trunfo, o mérito real, valor a que só o tempo – e muito
lentamente – permite que se dê o devido acolhimento.
O autor de
livros notabilíssimos, como 40 e Tal
Poemas de Amor e Circunstância e Uma Canção Desesperada, O Morto, A Arca, Quybyrycas, Eu, o Povo, Pressaga, entre outros, é um dos mais inventivos, singulares,
turbulentos e luxuosos manipuladores de palavras, metáforas, mitos, ritmos e
rimas de que pode orgulhar-se o universo poético lusíada. Desassossegador de
alto quilate, o autor desse livro único que é a “Ode Didáctica” O Morto surpreende-nos e agride-nos com
algumas das mais fulgurantes e dilacerantes sondagens ao âmago do coração
humano que regista a poesia lusa.
No citado e
belo artigo de António Cabrita, podemos ler o seguinte: “Tem sido um destino.
De cinco em cinco anos vejo-me obrigado a reeditar este texto, pelo mesmíssimo
motivo: a insuportável obscuridade que caiu sobre um dos mais interessantes e
completos espíritos da literatura e da arte portuguesa do século XX: António
Quadros / Grabato Dias (1933 – 1994), pintor, poeta, ceramista, pedagogo,
apicultor e um homem da Renascença como antes dele só houve um Almada
Negreiros. Vivendo no limbo, entre Moçambique e Portugal, ninguém o reivindica
e a todos faz sombra e a sua obra está toda por reeditar.” António Cabrita tem
toda a razão, excepto num pequeno ponto: quando diz: “ninguém o reivindica e a
todos faz sombra”, deveria substituir a copulativa “e” pela causal “porque”. O
vertiginoso ofício poético deste grande fabbro
ofusca, ofende e aterroriza poetas
que não decifram os mais elementares segredos e buzinas de uma arte poética que
de todo se lhes furta. Poetas como Grabato Dias, Reinaldo Ferreira ou David
Mourão-Ferreira ou Régio são sub-repticiamente “ocultados” como inconvenientes,
embora excepcionais artesãos de uma arte milenar, mas, hoje, perversamente
contornada. Quadros / Grabato Dias era minucioso em tudo o que aprendia e
aprendia devagar. A apicultura, a
cerâmica, a pintura não se improvisam: aprendem-se.
A poesia, também.
No meu
terceiro volume de memórias, escrevi isto: “O Quadros era um verdadeiro
fenómeno de saberes e técnicas de vários feitios (…). Nada lhe escapava, tudo
aprendia, com empenho, atenção esforçada, lentidão… Não ia em evidências nem
brilharetes. Cada território novo do saber era, para ele, um terreno
armadilhado de dificuldades. Via obstáculos onde os outros viam facilidades.
Percebia devagar, mas com obstinação. Na escola, chegaram a considerá-lo
“atrasado”. Cada disciplina nova era um tormento: nada era fácil, mas, quando
se punha a “escarafunchar”, chegava onde ninguém tinha chegado antes dele.
Andava devagar, mas escavava fundo. O que aprendia era para sempre. O que
descobria ficava. (Lembro-me só de um como ele, também “estúpido” e vagaroso no
compreender – chamava-se Einstein).”
A maior
parte da sua obra poética foi escrita em Moçambique, ao mesmo tempo que pintava
e dava lições gratuitas a alunos locais, no Núcleo de Arte. Foram seus alunos
atentos os hoje famosos Malangatana Valente (pintor) e Chissano (escultor). Quadros
era um docente notável, esforçado e admiravelmente sensível às dificuldades dos
alunos. Era de uma extrema minúcia em tudo o que fazia. Lembro-me, com grande
saudade, de noites prolongadas até de madrugada, na nossa casa, em Lourenço
Marques, com o António Quadros a
desvendar-nos todos os mistérios da vida
e percursos das abelhas. Era assim com tudo: um dedicado e autêntico
profissional. Enquanto escrevia o seu longo poema satírico – Quybyrycas, prefaciadas por Jorge de
Sena - , mais longo que os Lusíadas,
tinha fixado na parede um gráfico em que mostrava o progresso diário do poema,
em estrofes concluídas. Tanto o Quadros, pintor, como o Grabato Dias, poeta, se
consideravam, orgulhosamente, simples operários. O preço dos quadros que vendia nada tinha a ver com a
enorme reputação de que já então desfrutava: era rigorosamente calculado em
função do número de horas de trabalho investidas na obra. Preços dignos, mas
razoáveis. Dado que a maioria dos compradores era gente bastante endinheirada,
que estava disposta a pagar-lhe o que ele pedisse, a sua contenção “operária”
era tanto mais admirável.
Generoso e
atrevido, quando o jornal A Voz de
Moçambique se viu perseguido pelos poderes do dinheiro, aliados aos do
Estado Novo, sendo-lhe vedado o acesso a todas as tipografias (endividadas ao
Banco Nacional Ultramarino e portanto nas mãos dele), o António Quadros,
recentemente chegado a Moçambique, caiu-nos do céu na redacção do jornal,
ensinando-nos a fazê-lo pelo processo offset, um dos seus inúmeros saberes. Em
noitadas de calor e humidade sufocante, de tronco nú, ofereceu-nos,
gratuitamente, maquetes inesquecíveis, paginando o jornal de ponta a ponta e
assim nos ajudando a baratinar a malandragem no poder.
Termino com uma passagem da homenagem que lhe prestei nas minhas memórias: “Como poeta, como pintor, como fazedor, como criador, como intrépido desvendador de territórios ignotos, António Quadros foi um dos raros génios que tive o privilégio de conhecer, em vida. Não me apetece, neste caso, estar com cuidado a medir as palavras: disse “génio” e disse bem."
Termino com uma passagem da homenagem que lhe prestei nas minhas memórias: “Como poeta, como pintor, como fazedor, como criador, como intrépido desvendador de territórios ignotos, António Quadros foi um dos raros génios que tive o privilégio de conhecer, em vida. Não me apetece, neste caso, estar com cuidado a medir as palavras: disse “génio” e disse bem."
S. Pedro do Estoril, 19.08.2020
Eugénio Lisboa, em Crónica publicada no JL nº 1304, de 23 de Setembro a 6 de Outubro de 2020.
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