Biografia
compara Sartre e Simone de Beauvoir aos amantes cruéis de Laclos
Jones
reserva revelações capazes de chocar ainda mais que a hiperactividade sexual da
dupla
Por Antonio
Gonçalves Filho, no Estadão
"A rigor, os
casos extraconjugais dos filósofos Jean-Paul Sartre (1905-1980) e Simone de
Beauvoir (1908-1986) são por demais conhecidos para surpreender os seus leitores.
Felizmente, para esses, a biógrafa e historiadora escocesa Carole Seymour-Jones
reserva outras revelações capazes de chocar ainda mais que a hiperactividade
sexual da dupla, além de oferecer uma ousada análise da “necessidade simbiótica
de Beauvoir e Sartre um pelo outro”, firmada num pacto que durou meio século e
passou como um tractor sobre os amantes do casal. Carole Seymour-Jones foi atrás
de alguns deles, que sobreviveram à crueldade dos dois pensadores franceses,
comparados pela biógrafa aos personagens centrais do romance de Chordelos de
Laclos, As Ligações Perigosas, a marquesa De Merteuil e o visconde de Valmont,
dois pérfidos aristocratas que usam e humilham seus amantes. Tanto que baptizou o seu livro de Uma Relação Perigosa,
que chega às livrarias no dia 17( Fevereiro de 2014, no Brasil).
A exemplo
da dupla do romance epistolar do século XVIII, Sartre e Simone de Beauvoir
manipulavam as suas conquistas e ainda usavam as vítimas como personagens em seus
livros. Foi assim que uma jovem aluna de 17 anos, Olga Kosackiewicz, vinda da
Rússia, acabou inspirando o primeiro romance de Simone de Beauvoir, A Convidada (1943). Sem pretender ser
original, ela conta no livro a relação de dois intelectuais, abalada pela
formação de um triângulo amoroso com uma estudante. Dois anos depois Olga
migrou para uma das mais conhecidas obras de Sartre, A Idade da Razão (1945), em que um professor de filosofia deve apoiar o aborto de sua amante, pretexto para Sartre discutir conceitos como
liberdade e existencialismo.
Homem feio. Deslumbrada com a professora progressista, cheia de ideias libertárias –
posteriormente exploradas no clássico O
Segundo Sexo (1949) –, Olga caiu na rede de Simone, pulando de sua cama
para a de Sartre. Esse esquema, de seduzir as alunas para o companheiro (os
dois não moravam juntos), foi repetido inúmeras vezes, mas Olga acabou levando
o filósofo à loucura. Essa obsessão despertou ciúme na companheira. Contudo, o
padrão de relacionamento aberto continuou. Sartre se considerava feio demais
para caçar sozinho as suas presas. Quando pequeno, a sua mãe tentava disfarçar o
estrabismo do filho deixando crescer seus cachos loiros, até que o avô, cansado
de ver o neto ser confundido com uma menina,o levou ao barbeiro.
Albert
Camus, que pretendia escrever uma enciclopédia de ética com Sartre, até ousou
criticar a acção predatória do promíscuo amigo (com quem rompeu em 1952 por
divergências políticas). Recebeu como resposta do filósofo um rosto marcado
pela feiura e uma pergunta de volta: “Você já olhou para a minha cara?”.
Sartre era um Cyrano em busca de uma Roxane virgem para compensar o aleijão. A
biógrafa, para quem o físico de Sartre determinou sua conduta, revela uma carta
em que Sartre admite ser um “canalha desprezível”, um “funcionário público
sádico e nojento”. Camus, ao contrário, era bonito e namorava mulheres lindas
(como as actrizes Catherine Sellers e Maria Casarès). Além disso, era superior como romancista a Sartre, um homem de acção comprometido com a Resistência. Sartre
viu nele o combatente que aspirava ser, segundo a biógrafa. Camus não pegou em
armas, mas arriscou a vida, escrevendo contra os nazis, enquanto Sartre bebia
com os oficiais alemães, de acordo com Carole Seymour-Jones.
O período
da Ocupação alemã é o ponto nevrálgico da biografia de Sartre e Simone de
Beauvoir. Ambos continuaram a viver confortavelmente em Paris durante o período
em que os alemães desfilavam as fardas e arrogância pela capital francesa.
Sartre comprava comida no mercado negro e não hesitou em tomar o posto de um
professor judeu no Liceu Condorcet, Henri Dreyfus Lefoyer (sobrinho-neto do
famoso capitão Alfred Dreyfus), destituído do cargo durante a Ocupação. A
biógrafa não o acusa de frequentar os salões dos nazis mas lembra que existiam
outras escolhas a fazer. E, como para reafirmar o compromisso de Sartre com a
própria obra, ela cita a noite de 3 de Junho de 1943, quando inúmeros nazis uniformizados brindaram ao sucesso da peça As
Moscas, de Sartre, no teatro de Charles Dullin, considerado
“deutschfreundlich” (amigável) pelos alemães. Marc Bénard, que esteve preso com
o filósofo, reconheceu Sartre retribuindo os brindes dos alemães. Ele mesmo
enviou o texto da peça aos censores nazis, garantindo não existir “nada
antigermânico” nela.
A
biógrafa usa a relação de amizade de Camus e Sartre para mostrar justamente que
entre os dois era impossível estabelecer um vínculo frouxo como o do filósofo
com os alemães ou suas amantes. Era tudo ou nada. Camus não foi um teórico, mas
um activista político bastante crítico em relação aos crimes de Stalin. Sartre,
neutro sobre Vichy, também silenciou sobre a ditadura soviética mesmo quando o
mundo já conhecia a história dos dissidentes russos, permanecendo um apologista
do regime comunista. Se, ao tomar o lugar de Dreyfus durante a Ocupação, ainda
que temporariamente, ele tirou proveito das leis raciais de Vichy, que proibiam
professores judeus de leccionar – mesmo não precisando do emprego –, ao
defender a indefensável ditadura do proletariado, Sartre admitiu que Camus foi
o verdadeiro combatente da Resistência.
O que sobra
do mito é pouco, depois da demolição conjunta de Sartre e Simone. Carole
Seymour-Jones insinua que o romance do filósofo com uma agente da KGB, Lena
Zorin, foi mais que um caso passageiro. Foi, segundo ela, a submissão final de
um homem de natureza servil ao regime soviético. Raymond Aron, colega de
Sartre, dizia que Sartre e Simone eram a “Resistência do Café de Flore”, o que
equivale, no Brasil, a classificar a dupla de esquerda festiva.
Pode ser
que Aron tenha exagerado, mas, voltando à cama de Sartre, a biógrafa faz uma
lista trágica do destino de suas amantes, arregimentadas pela companheira: uma matou-se, outra virou viciada e uma outra ficou tão traumatizada que até a fria
professora sentiu culpa. A biógrafa assume ter ficado “perplexa com a
profundidade do abismo entre a lenda pública e as vidas privadas do casal”. Mas
esclarece que sua admiração – tanto por Sartre como por Beauvoir – não sofreu
desgaste. Difícil acreditar."
Antonio Gonçalves Filho, artigo publicado em Estadão, Brasil, em 10.02.2014
Sobre o livro
“Uma relação perigosa” , de Carole Seymour-Jones ,Editora
Record, Brasil, Janeiro 2014
Esta biografia dupla narra a história de dois dos maiores ícones intelectuais do século XX: Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre. O livro é o retrato de suas vidas, desde a infância até a morte. É uma incisiva reconstrução da ligação entre eles - na verdade uma recusa em casar. Dos corredores da Sorbonne aos cafés da Rive Gauche, descobrimos como a talentosa Simone se apaixonou pelo arrogante Jean-Paul. Carole Seymor-Jones descreve o primeiro verão que passaram juntos, em 1929. Os debates intensos que se prolongavam noite adentro. A competição sexual. As traições. As ideias perigosas que levavam as pessoas a experimentar novos comportamentos e o amor profundo que este casal incomum tinha um pelo outro.
Sem comentários:
Enviar um comentário