Em 1969, Manoel de Andrade viveu intensamente um outro dia, quando foi obrigado a fugir do Brasil, época violenta da Ditadura. Um tempo que levou o poeta a escrever este poema, na alucinante véspera da sua fuga aos tentáculos da violenta polícia política. Um emocionante poema que permanece como um emblemático testemunho literário dessa vivência.
A Liberdade foi para muitos a utopia de uma vida. Nunca é um bem que permanece. Exige atenção e memória. O áspero e íngreme caminho que tantos calcorrearam não pode permitir retrocessos. E o mundo está sempre em constante mudança. Os arautos de hoje podem ser os algozes de amanhã.
Manoel de Andrade percorreu uma América Latina , numa diáspora forçada pelos algozes do seu país. As veias dessa América estavam abertas e delas jorravam a dor e a miséria dos oprimidos.
Ao Brasil e ao poeta Manoel de Andrade , de aqui os saudamos , tecendo um profundo voto de solidariedade nestes novos tempos de mais acentuada turbulência.
Do poeta, as palavras que tão bem desenhou e que sempre nos emocionam:
Manoel de Andrade percorreu uma América Latina , numa diáspora forçada pelos algozes do seu país. As veias dessa América estavam abertas e delas jorravam a dor e a miséria dos oprimidos.
Ao Brasil e ao poeta Manoel de Andrade , de aqui os saudamos , tecendo um profundo voto de solidariedade nestes novos tempos de mais acentuada turbulência.
Do poeta, as palavras que tão bem desenhou e que sempre nos emocionam:
Quatorze de março
mil novecentos e sessenta e nove.
É preciso…
é imprescindível denunciar o compasso ameaçador destas horas,
descrever esta porta estreita que atravesso,
esta noite que me escorre numa ampulheta de pressentimentos.
Um desespero impessoal e sinistro paira sobre as horas…
O ano se curva sob um tempo que me esmaga
porque esmaga a pátria inteira…
Nossas canções silenciadas
nossos sonhos escondidos
nossas vidas patrulhadas
nossos punhos algemados
nossas almas devassadas.
Pelos ecos rastreados dos meus versos
chegam os pretorianos do regime.
Alguém já foi detido, interrogado, ameaçado
e por isso é necessário antecipar a madrugada.
E eis porque esse canto já nasce amordaçado
porque surge no limiar do pânico.
Meu testemunho é hoje um grito clandestino
meus versos não conhecem a luz da liberdade
nascem iluminados pelo archote da esperança
para se esconderem na silenciosa penumbra das gavetas.
Escrevo numa página velada pelo tempo
e num distante amanhecer
é que o meu canto irá florescer.
Escrevo num horizonte longínquo e libertário
e num tempo a ser anunciado pelo hino dos sobreviventes.
Escrevo para um dia em que os crimes destes anos puderem ser [contados
para o dia em que o banco dos réus estiver ocupado pelos torturadores
Contudo, nesta hora, neste agora
o tempo se reparte pra quem parte
e um coração se parte nos corações que ficam.
O amanhecer caminha para desterrar os nossos gestos
para separar nossas mãos e nossos olhos
e nesta eternidade para pressentir o que me espera
já não há mais tempo para dizer quanto quisera.
Tudo é uma amarga despedida nesta longa madrugada
e neste descompassado palpitar,
contemplo meus livros perfilados de tristeza
retratos silenciosos de tantas utopias,
bússolas, faróis, retalhos da beleza.
Aceno a Cervantes, a Lorca, a Maiakovski
mas só Whitman seguirá comigo
nas suas páginas de relva
e no seu canto democrático.
Contemplo ainda os pedaços do meu mundo
nos amigos do penúltimo momento
nas lágrimas de um benquerer
na infância de minha filha
e nesse beijo de adeus em sua inocência adormecida.
Nesta agonia…
neste abismo de incertezas…
abre-se o itinerário clandestino dos meus passos.
De todos os caminhos
resta-me uma rota de fuga, outras fronteiras e um destino.
Das trincheiras escavadas e dos meus sonhos,
restou uma bandeira escondida no sacrário da alma
e no coração…
um passaporte chamado… liberdade.
Curitiba, 14 de Março de 1969
Manoel de Andrade, in POEMAS PARA A LIBERDADE , Edição bilíngue, Escrituras Editora, São Paulo, Brasil, 2009, pp.65-69
Nosso grande amigo e irmão Manoel.
ResponderEliminarSempre admiramos a sua enorme cultura e uma grande experiência de vida.
Parabéns pelo poema que nos faz lembrar Castro Alves.
Obrigado por compartilharmos momentos inesquecíveis nesta vida.
Abraço fraternal. Célia e Laércio