Sobre a Poesia é um espaço que traz a voz dos poetas. Não apenas com os seus poemas, senão e também, com aquilo que pensam e professam sobre a poesia.
Hoje, regressa-se a Ruy Belo, um dos nossos grandes poetas. O texto será publicado em duas partes, em dias consecutivos, devido à sua extensão.
“Poesia, último reduto da literatura”
por Ruy Belo
«Com
o advento, na Idade Moderna, da prosa de ficção como género narrativo destinado
a substituir o poema épico no gosto de um público que, se antes era recrutado
entre a nobreza e o clero, agora, na época do capitalismo triunfante, se via
representado por uma burguesia do maior número, disposta a lutar pelas sua
liberdades – entre elas a democratização da cultura –, o romance e a novela,
expressos numa linguagem mais próxima da da comunidade, arquitectados com base
numa intriga que, por mais transposta, não deixava de reflectir ambições,
problemas, caos da classe dominante, centrados sobre as relações entre
protagonistas e figurantes herdeiros dos anteriores heróis, com o advento da
prosa de ficção, dizíamos nós, a poesia parece ter sido relegada para segundo
plano. Não é que houvesse desaparecido, evoluiu até, passou por vicissitudes
várias, os novos credos literários impuseram-lhe modificações que lhe
asseguraram sempre uma posição de vanguarda entre as artes que exploram a frase
e as estruturas em que ela se organiza. Além disso, a poesia não deixou de
representar o núcleo e o limite de toda a literatura, de maneira que, em
virtude da linguagem, do clima, do tipo de emoções que desencadeavam,
conseguiram afinal alcançar.
Mas a verdade é que o favor do público se voltou decididamente para os novos
subgéneros e, se poetas houve que se impuseram, na maior parte dos caos isso
teria ficado a dever-se à sua capacidade para se exprimirem noutros géneros, a
uma intervenção na vida cívica que os converteu em figuras nacionais senão
humanitárias ou ao cultivo de um tipo de poesia que, por circunstâncias várias
– grau de acessibilidade, participação nos ideais dos movimentos
revolucionários, fatalidades de um destino ou incidências de uma vida que, se
chegava ao extremo de os eliminar da sociedade, chamava afinal a atenção das
gentes para a sua figura e portanto para a sua obra – conseguiu atingir um
público mais ou menos vasto.
Mas, quanto ao essencial, isto é, quanto ao lugar que lhes viria a caber na
história literária, como grandes criadores, como poetas que, mercê do seu génio
e da sua capacidade de expressão, revolucionaram as concepções poéticas,
raramente no seu tempo conheceram êxito ou mesmo compreensão, não já dos
dirigentes da sociedade, dos homens da cultura oficial, mas mesmo do público.
O romance e a novela impunham-se, o teatro escrito e o representado impunha-se,
o ensaio aparecia e obtinha um favor crescente. Até que apareceu o cinema, com
toda a sua novidade e que, graças às sucessivas aquisições técnicas, ao seu
carácter de arte pouco menos que total, ao seu meio de transmissão visual, foi
conquistando justamente uma progressiva popularidade. E, para além disso que,
ao fim e ao cabo, poderia não revestir um significado profundo, o cinema
produziu verdadeiras obras-primas e permitiu a afirmação de grandes criadores
artísticos, de maneira que o cinema, arte de equipa e de colaboração, arte
colectiva como na Idade Média e no Renascimento toda a grande arte o fora, se
deu ao luxo de conseguir produzir as mais fundas emoções estéticas que a arte
moderna no seu conjunto se mostrou capaz de produzir.
O cinema, com a sua visualidade, com processos narrativos como o flash-back,
ou com a voz-off, com característica técnicas como a montagem, por
exemplo, influenciou o romance e mesmo a poesia. E a arte continuou, embora a
partir de certa altura, viesse a encontrar perigosos concorrentes na televisão
e no desporto – espectáculo de massas. Graças ao cinema, a arte continuou a
desempenhar uma função de relevo na vida da sociedade, de maneira que
realizadores, actores se acabaram por converter em grandes figuras populares,
que chegam a ocupar lugar de relevo na imprensa e na rádio-televisão.
Mas tudo o que é humano sofre a corrosão do tempo e, primeiro o romance, hoje
em dia o próprio cinema atravessaram e atravessam uma crise de usura. O
argumento, a intriga, a história, apesar de representados de feição sempre
diferente, graças ao génios dos criadores, acabaram por fatigar um público que,
na variedade e intensidade da vida real, não deixava de encontrar peripécias
bastantes, capazes de preencher e de desenvolver as imaginações mais ambiciosas.
Tanto assim que, como género literário, o ensaio, por natureza despido de
argumento, começou a chamar as atenções, enquanto a ficção, que desertara da
poesia para o romance para o cinema, deixou de constituir o núcleo deste, que
veio, nas suas obras mais representativas, a revestir por exemplo as formas de
cinema-verdade, de cinema-ensaio.
Ao fim e ao cabo, a arte depurou-se, ao ver que lhe faltava um elemento que,
tecnicamente, nunca funcionou mais que como processo de construção. O romance,
o cinema deixaram de se apoiar num ingrediente que, afinal de contas, não
passava de uma isca, de um engodo, debruçaram-se sobre os processos técnicos,
revolucionaram a linguagem e a construção, especializaram-se, cingiram-se ao
que de artístico existe na arte e ganharam em intensidade e permanência o que
perderam em extensão e popularidade.»
Ruy Belo , Poesia, último reduto da literatura, in ”Na senda da Poesia” , Ed. Assírio & Alvim, 2002.
E TUDO ERA POSSÍVEL
Na minha juventude antes de ter saído
da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido
Chegava o mês de maio era tudo florido
o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido
E tudo se passava numa outra vida
e havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer
Só sei que tinha o poder duma criança
entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível era só querer
Ruy Belo, in Homem de Palavra[s] , Lisboa, Editorial Presença, 1999
Mas Que Sei Eu, Poema de Rui Belo com narração de Mundo Dos Poemas
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