sábado, 21 de março de 2020

Sobre a Poesia XX

Retoma-se, neste espaço,uma rubrica que fomos  alargando  ao longo do tempo , sem a periodicidade que merece , mas com o fervor e encantamento que sempre nos provoca   a Poesia.
«Um poema é feito de tanta coisa» afirma Eugénio Lisboa, num texto notável sobre um livro de poemas ( Nó Cego, o regresso ) de Vasco Graça Moura.
Quer o poeta quer o crítico literário conhecem essa  espécie de canto que se celebra hoje. 
É nessas vozes maiores da nossa Literatura  que lográmos  «rasgar a sombra intocável» que,  neste dia Mundial da Poesia,  possa pairar sobre  o pensamento de todos nós.

XVII
como meter o mundo 
num poema? traduzir-lhe
a áspera realidade, a doçura
intranquila?

como meter o trabalho
dos homens, os seus dias,
nessas escassas linhas,
seus ócios, seus espelhos,

seus desvarios, suas
catástrofes de amor?
como meter a mortë
nas palavras?

só que uma coisa bela
é para sempre uma alegria inquieta.
Vasco Graça Moura, in " Nó cego, o regresso" - " poesia reunida, 1962-1997" vol. 1,  Quetzal Editores,  Outubro de 2012

Vasco Graça Moura
NÓ CEGO, O  REGRESSO
Por Eugénio Lisboa
" Como meter o mundo / num poema?", pergunta o poeta num dos textos mais belos deste Nó Cego. Um poema é feito de tanta coisa sábia e aparentemente tão alheia à nossa imediata angústia quotidiana! Um poema insere-se numa cultura específica ( e V. Graça é um poeta superiormente culto) e requer frequentemente uma tecnologia exigente ( e V. Graça Moura é um fabbro prodigioso). Até que ponto pode tudo isto respeitar - sem a deformar - a nossa límpida vivência das coisas? ( mas haverá uma límpida vivência das coisas?). " Como meter o trabalho / dos homens , os seus dias, / nessas escassas linhas, seus ócios, seus espelhos, / /  como meter a morte / nas palavras?" - eis um sério e perturbante punhado de perguntas que todo o artista  consciente não pode deixar de fazer, a certo ponto  do percurso. Tem mesmo o dever de as fazer. Mas o que não pode  ter é a proibida inocência  de pensar  que é possível  dar-lhes uma resposta. Dizia Cocteau, ensaiando uma dessas  impossíveis respostas, que a arte  é a ciência  feita carne. Querendo , em suma , significar que uma sábia arte poética   não perturba , pelo contrário, a intensidade ( e autenticidade)  da comunicação. Como se a constante quântica deste pelouro que é a arte poética não introduzisse qualquer deformação no percurso entre o referente , o emissor e o destinatário. Ou como se introduzisse  tão minimamente que não valesse a pena pensar-se  nisso!
Poeta culto e artesão superior e meticuloso, Vasco Graça Moura não pode ficar - e não fica - indiferente às ambíguas relações entre real  e o canto que no-lo devolve - em que estado de conservação ? « o real será [apenas] / a epígrafe  de sermos? » Mais: [ será apenas] « uma espécie de canto/ que a música transcende?» Mas em que termos  ( de deformação , de distorsão)  transcenderá? « o real será (...) / uma realidade?» Ou sê-lo-á a música que no-lo traduz? De que é  capaz essa música? Quais os poderes dela? Que pode ela fazer que aconteça? Auden preferia responder em termos de mais radical  ( e saudável?) cepticismo:
Poetry makes  nothing happen:  it survives
   In the vallley of its saying

( A poesia nada faz acontecer: sobrevive
No vale do seu próprio dizer).

A poesia «nada faz acontecer » mas, observa Auden, «sobretudo vive no vale do seu próprio dizer». Restaria investigar que modos reveste este sobreviver.  Visitando o quotidiano «rigor/ do coração: nó cego , indesatável / por nevoeiro espesso / ou ténue gaze na distância», Vasco Graça Moura não logra , como ninguém logra,  «rasgar a sombra intocável». A linguagem do poeta  não tem no leque  dos seus poderes o poder de solucionar enigmas. Explora , quando muito, sem a resolver , como observava com argúcia um escritor inglês contemporâneo, a insanável perplexidade do seu autor.  O rigor e a virtuosidade do fabbro são precisamente a melhor resposta - porventura a única - à radical  incapacidade  de responder  às perguntas milenárias. Quanto maior  e mais certa  a derrota  na sondagem, tanto mais esplendoroso deve ser o vestuário da pergunta.  O deslumbramento técnico do ritmo deve poder  «aguentar a desilusão da pesquisa. Mais uma vez , era Nietzche quem tinha razão: « O poeta apresenta festivamente os seus pensamentos, na carruagem do ritmo: em geral, porque eles não têm, por si, pernas para andar».
Eugénio Lisboa, in " As vinte e cinco notas do texto", Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1987, pp 210, 211

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