Retoma-se, neste espaço,uma rubrica que fomos alargando ao longo do tempo , sem a periodicidade que merece , mas com o fervor e encantamento que sempre nos provoca a Poesia.
«Um poema é feito de tanta coisa» afirma Eugénio Lisboa, num texto notável sobre um livro de poemas ( Nó Cego, o regresso ) de Vasco Graça Moura.
Quer o poeta quer o crítico literário conhecem essa espécie de canto que se celebra hoje.
É nessas vozes maiores da nossa Literatura que lográmos «rasgar a sombra intocável» que, neste dia Mundial da Poesia, possa pairar sobre o pensamento de todos nós.
XVII
como meter o mundo
num poema? traduzir-lhe
a áspera realidade, a doçura
intranquila?
como meter o trabalho
dos homens, os seus dias,
nessas escassas linhas,
seus ócios, seus espelhos,
seus desvarios, suas
catástrofes de amor?
como meter a mortë
nas palavras?
só que uma coisa bela
é para sempre uma alegria inquieta.
Vasco Graça Moura, in " Nó cego, o regresso" - " poesia reunida, 1962-1997" vol. 1, Quetzal Editores, Outubro de 2012
Vasco Graça Moura
NÓ CEGO, O REGRESSO
Por Eugénio Lisboa
" Como meter o mundo / num poema?", pergunta o poeta num dos textos mais belos deste Nó Cego. Um poema é feito de tanta coisa sábia e aparentemente tão alheia à nossa imediata angústia quotidiana! Um poema insere-se numa cultura específica ( e V. Graça é um poeta superiormente culto) e requer frequentemente uma tecnologia exigente ( e V. Graça Moura é um fabbro prodigioso). Até que ponto pode tudo isto respeitar - sem a deformar - a nossa límpida vivência das coisas? ( mas haverá uma límpida vivência das coisas?). " Como meter o trabalho / dos homens , os seus dias, / nessas escassas linhas, seus ócios, seus espelhos, / / como meter a morte / nas palavras?" - eis um sério e perturbante punhado de perguntas que todo o artista consciente não pode deixar de fazer, a certo ponto do percurso. Tem mesmo o dever de as fazer. Mas o que não pode ter é a proibida inocência de pensar que é possível dar-lhes uma resposta. Dizia Cocteau, ensaiando uma dessas impossíveis respostas, que a arte é a ciência feita carne. Querendo , em suma , significar que uma sábia arte poética não perturba , pelo contrário, a intensidade ( e autenticidade) da comunicação. Como se a constante quântica deste pelouro que é a arte poética não introduzisse qualquer deformação no percurso entre o referente , o emissor e o destinatário. Ou como se introduzisse tão minimamente que não valesse a pena pensar-se nisso!
Poeta culto e artesão superior e meticuloso, Vasco Graça Moura não pode ficar - e não fica - indiferente às ambíguas relações entre real e o canto que no-lo devolve - em que estado de conservação ? « o real será [apenas] / a epígrafe de sermos? » Mais: [ será apenas] « uma espécie de canto/ que a música transcende?» Mas em que termos ( de deformação , de distorsão) transcenderá? « o real será (...) / uma realidade?» Ou sê-lo-á a música que no-lo traduz? De que é capaz essa música? Quais os poderes dela? Que pode ela fazer que aconteça? Auden preferia responder em termos de mais radical ( e saudável?) cepticismo:
Poeta culto e artesão superior e meticuloso, Vasco Graça Moura não pode ficar - e não fica - indiferente às ambíguas relações entre real e o canto que no-lo devolve - em que estado de conservação ? « o real será [apenas] / a epígrafe de sermos? » Mais: [ será apenas] « uma espécie de canto/ que a música transcende?» Mas em que termos ( de deformação , de distorsão) transcenderá? « o real será (...) / uma realidade?» Ou sê-lo-á a música que no-lo traduz? De que é capaz essa música? Quais os poderes dela? Que pode ela fazer que aconteça? Auden preferia responder em termos de mais radical ( e saudável?) cepticismo:
Poetry makes nothing happen: it survives
In the vallley of its saying
( A poesia nada faz acontecer: sobrevive
No vale do seu próprio dizer).
A poesia «nada faz acontecer » mas, observa Auden, «sobretudo vive no vale do seu próprio dizer». Restaria investigar que modos reveste este sobreviver. Visitando o quotidiano «rigor/ do coração: nó cego , indesatável / por nevoeiro espesso / ou ténue gaze na distância», Vasco Graça Moura não logra , como ninguém logra, «rasgar a sombra intocável». A linguagem do poeta não tem no leque dos seus poderes o poder de solucionar enigmas. Explora , quando muito, sem a resolver , como observava com argúcia um escritor inglês contemporâneo, a insanável perplexidade do seu autor. O rigor e a virtuosidade do fabbro são precisamente a melhor resposta - porventura a única - à radical incapacidade de responder às perguntas milenárias. Quanto maior e mais certa a derrota na sondagem, tanto mais esplendoroso deve ser o vestuário da pergunta. O deslumbramento técnico do ritmo deve poder «aguentar a desilusão da pesquisa. Mais uma vez , era Nietzche quem tinha razão: « O poeta apresenta festivamente os seus pensamentos, na carruagem do ritmo: em geral, porque eles não têm, por si, pernas para andar».
Eugénio Lisboa, in " As vinte e cinco notas do texto", Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1987, pp 210, 211
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