Primo do primata, irmão ou primogénito
por tantas linhas que essa História abarca
nessa ilustre família do passado
diga-nos: afinal quem foi teu patriarca???
Sobrevivente de todos os caminhos
de Neanderthal às passarelas do terror
grego ou troiano, cruzado ou sarraceno
judeu e palestino no ódio e no amor.
Ei-lo chegado dos arraiais do tempo
sem pêlos, ereto e bem trajado
ostentando as etiquetas do progresso
e o seu orgulho de homem civilizado.
Ei-lo no terceiro passo do milénio
herdeiro da filosofia e da ciência
depositário infiel da lei e da razão
o senhor da guerra e da violência.
Ei-lo no palco da comédia humana
protagonista do escândalo e da inocência
resignado a gargalhar, chorar, fingir
na incomunicável pantomima da existência.
Ei-lo manequim do orgulho e do egoísmo
trajando sua incómoda
religiosidade
encurralado pela vida e para a morte
tateando tragicamente a eternidade.
Ei-lo garimpando as jazidas da ilusão
escravo do ouro, do poder e da
aparência
condenado ao remorso, à dor e à solidão
no tribunal implacável da consciência.
Ei-lo a dançar no Carnaval do mundo
nesse eterno festim, grotesco e
sensual
triste figura de pierrô e colombina
pobre bacante dessa orgia universal.
Ei-lo desvendando os caminhos siderais
ainda que na Terra viva a esmo
imantado aos seus instintos bestiais
incapaz de abrir uma rota pra si mesmo.
Ei-lo arrebatando impaciente o seu bocado
no gesto cego, primitivo e infantil
disputando a qualquer preço o seu brinquedo
qual uma criança em seu íntimo perfil.
Ei-lo mafioso, sedutor e
corrompido
traficando em um varejo alucinante
de colarinho branco ou encardido
parceiro inconfessável de um mundo degradante.
Ei-lo a cuspir no prato que comeu
e desse banquete só migalhas restarão
as águas mortas, florestas abatidas
um planeta devastado àqueles que virão.
Promotor da fome e da miséria
com sua elite global e rapinante
vai saqueando a vida dia-a-dia
impassível ante um grito agonizante.
Mas apesar de tudo é o herói que
sonha
pra buscar na utopia a sua glória
arauto da liberdade, da paz e da justiça
sacrificado nas trincheiras da história.
Missionário do amor, da arte e do progresso
anónimo na humildade e na
grandeza
indiferente aos holofotes do “sucesso”
mora na luz da fraternidade e da beleza.
Ei-lo enfim a se arrastar no
chão da vida
com a alma manchada por tantos desatinos
milenar caminheiro da esperança
solitário e sem rumo diante do destino.
Perplexo frente a tantos holocaustos
ensurdecido ante os canhões da guerra
fita as estrelas e suspira fundo
sonhando um dia com a paz na Terra.
Curitiba, Março de 2004
Manoel de Andrade, in "Cantares", Escrituras Editora, São Paulo, Brasil, 2007, pp. 82-84
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