Ponta do Altar , Ferragudo -Algarve |
Ponta do Altar, rio Arade e barra de Portimão |
À sombra de um leixão, deitado na areia seca e fina, eu lia versos, respirando o ar iodado, ou corria com a vista a curva do vasto horizonte, embalado pela canção cristalina do mar.
Perto da praia, o casco todo negro, pesado e sem graça, de um vapor, com uma grande bandeira vermelha desfraldada à popa, e logo o contraste: um iate cinzento-claro, que se balouça com elegância.
De todos os pontos do horizonte surgem a cada instante as velas dos batéis de pesca, velas agudas, que se cruzam como asas simbólicas, que se perseguem, que se reviram e param, que prosseguem dispersas, precipitadas, numa desordem de fuga, ou caminham reguladamente em grupos, de conserva, e tudo vai direito à barra, cuja entrada estreita um rochedo esconde.
Outro batel, com a vela toda panda, sai, sozinho, a barra e entra no mar saltando sobre as ondas de vidro verde, franjadas de espuma, como cavalo fogoso que atravessa um prado cheio de erva.
O céu, de um azul intensíssimo, está como que esponjado de pequenas nuvens; a Ponta do Altar perfila-se com o seu recorte siracusano, e pouco a pouco, ao declinar do Sol, acende-se em oiro.
Vai vazando a maré, alargando-se a mais e mais a faixa de areia molhada onde o céu se reflecte como num infinito espelho...
Era a hora da tarde em que os banhos recomeçam, e como de costume, naquela praia cheia de recortados leixões, os banhistas despiam-se junto às rochas pendurando nelas o seu fato.
Em volta do leixão, a cuja sombra eu me acolhera, havia roupas de mulheres, que sem dúvida pertenciam ao grupo de serrenhas que ali próximo, de mãos dadas e soltando gritos selvagens, tomavam à babugem da água um desses infindáveis banhos aconselhados pelos preceitos da higiene sertaneja. Pareceu-me reconhecer nelas umas criaturas sem interesse, com que amiúde me cruzara pelos caminhos, entre as quais sobressaía certa moça forte, cheia e espadaúda, que andava sempre de olhos baixos, exibindo um pudor que ninguém, certamente, desejaria ofender.
Naturalmente, a minha vista não se distraía do encanto da paisagem ou da intimidade do livro, para seguir no banho as evoluções mais ou menos grotescas daquelas sereias, quanto a mim muito pouco ou nada voluptuárias, e foi assim que elas saíram do mar, e vieram para o leixão onde estava a sua roupa, e ao qual voltava costas, sem eu dar por tal.
De repente, senti que alguém tossia, fazendo-o para chamar a minha atenção. Voltei-me instintivamente: era a serrenha pudenda que se limpava, acocorada, numa anfractuosidade da rocha que formava nicho.
Tão depressa verificou que se encontrava em foco, ergueu-se, abriu os braços e soltou o lençol.
Prodígio de elegância, perfeição e graça escultural, se me patenteou então o seu corpo enrijecido pela frialdade da água, cujas gotas ainda lhe escorriam pela carne marmórea. O peso da água afeiçoara-lhe na cabeça hirsuta um toucado de estátua antiga, e os seios disparavam como duas pombas que vão voar.
Impassível, sem um sorriso e lentamente - tal uma estátua em pedestal móvel -, ela rodou sobre si mesmo, franqueando à minha vista sôfrega as mais secretas maravilhas do seu corpo.
Terminada a volta agachou-se, meteu-se no lençol, e chamou por outra mulher, que a veio limpar.
Daí a nada passava por mim já vestida - entrouxada nas suas vestimentas de serrenha lorpa -, arrastando os sapatos de bezerro, estúpida, a boca mole e inexpressiva, os olhos baixos...
Espreitei-a depois, no banho, vezes sem conto, a ver se a cena se repetia, mas inutilmente.
Outras tentativas, de natureza mais prática, foram igualmente infrutíferas...
Concluí que assistira, por acaso, à passagem pelo seu corpo de uma alma de nereida encontrada dentro de água e enganada pelo aspecto helénico daquela praia..."
Manuel Teixeira-Gomes,in Inventário de Junho, Portugália Editora, Lisboa, 1960
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