"Aquilo de que mais gosto no mundo é a Sicília,
já pode ver, e ainda do cimo do Etna, em plena luz do dia, sob condição de
dominar a ilha e o mar. Java também, mas na época dos alíseos. Sim, estive lá,
em novo. De uma maneira geral gosto das ilhas. É mais fácil imperar aí.
Mandar é respirar, não é desta opinião? E até
os mais deserdados chegam a respirar. O último na escala social tem ainda o
cônjuge ou o filho. Se é celibatário, um cão. O essencial, em resumo, é uma
pessoa poder zangar-se sem que outrem tenha o direito de responder. «Ao pai não
se responde», conhece a fórmula? Em certo sentido, ela é singular. A quem se
responderia neste mundo senão a quem se ama? Por outro lado, ela é convincente.
É preciso que alguém tenha a última palavra. Senão, a toda a razão pode opor-se
outra: nunca mais se acabava. A força, pelo contrário, resolve tudo. Levou
tempo, mas conseguimos compreendê-lo. Por exemplo, deve tê-lo notado, a nossa
velha Europa filosofa, enfim, da melhor maneira. Já não dizemos, como nos
tempos ingénuos: «Eu penso assim. Quais são as suas objecções?» Tornámo-nos
lúcidos. Substituímos o diálogo pelo comunicado.
Cá entre nós, a servidão, de preferência
sorridente, é pois inevitável. Mas não o devemos reconhecer. Quem não pode
fugir a ter escravos, não valerá mais que os chame homens livres? Por
princípio, em primeiro lugar, e depois para os não desesperar. É-lhes bem
devida esta compensação, não acha? Deste modo eles continuarão a sorrir e nós
manter-nos-emos de consciência tranquila. Sem o que, seríamos forçados a
voltar-nos para nós mesmos, ficaríamos loucos de dor, ou até modestos, tudo é
de temer.
Sempre vivi livre e poderoso. Simplesmente,
sentia-me liberto em relação a todos pela excelente razão que me considerava
sem igual. Julguei-me sempre mais inteligente do que ninguém, disse-lhe eu, mas
também mais sensível e mais destro, atirador de escol, volante inigualável, e
melhor amante. (…) Não me reconhecia senão superioridades, o que explicava a
minha benevolência e a minha serenidade. Quando me ocupava de outrem, era pura
condescendência, em plena liberdade, e todo o mérito revertia a meu favor: eu
subia um degrau no amor a mim mesmo.
Com algumas outras verdades, descobri a pouco
e pouco estas evidências, durante o período que se seguiu à noite de que lhe
falei. Não imediatamente, não, nem com grande nitidez. Tive, antes de mais, de
recuperar a memória. (…) Até ali, tinha sido sempre ajudado por uma espantosa
faculdade de esquecimento. Esquecia tudo e em primeiro lugar as minhas
resoluções. No fundo, nada contava. Guerra, suicídio, amor, miséria,
prestava-lhes atenção, é certo, quando as circunstâncias a isso me obrigavam,
mas de uma maneira cortês e superficial.
(…) Eu não era lá de muito bom estofo para
perdoar as ofensas, mas acabava sempre por esquecê-las. E, se alguém se
julgasse detestado por mim, não se livrava de se ver saudado com um largo
sorriso. Consoante a sua natureza, admirava então a minha grandeza de alma ou
desdenhava a minha baixeza, sem pensar que a minha razão era mais simples: eu
tinha esquecido até o seu nome.
Avançava assim à superfície da vida, por
palavras, de certo modo, nunca na realidade. Todos esses livros mal lidos,
esses amigos mal amados, essas cidades mal visitadas, essas mulheres mal
possuídas! Eu fazia gestos por enfado ou por distracção. Os seres vinham logo
atrás, queriam agarrar-se, mas não havia nada, e era a infelicidade. Para eles.
Porque, quanto a mim, eu esquecia. Nunca me lembrei senão de mim mesmo.
A verdade é que todo o homem inteligente, como
o senhor bem sabe, sonha em ser um gangster e em imperar sobre a sociedade
unicamente pela violência. Como isso não é tão fácil como a leitura de romances
da especialidade o pode fazer crer, envereda-se geralmente pela política e
corre-se para o partido mais cruel. Que importa, não é assim, humilhar o
próprio espírito, se desse modo se consegue dominar o mundo inteiro? Eu
descobria dentro de mim gratos sonhos de opressão.
Daria dez entrevistas com Einstein por um
primeiro encontro com uma bonita figurante. É verdade que, ao décimo encontro,
eu suspiraria por Einstein ou por umas fortes leituras. Em suma, nunca me
incomodei com os grandes problemas senão nos intervalos dos meus pequenos
desregramentos.
O acto de amor, por exemplo, é uma confissão.
Aí o egoísmo grita, ostensivamente, a vaidade aí pavoneia, ou então aí se
revela a verdadeira generosidade."
Albert Camus, in " A Queda", Edições Livros do Brasil, Lisboa
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