terça-feira, 18 de junho de 2019

O livro


“O livro nas mãos do padre foi como isca para os olhos de António José Bolívar. Pacientemente, esperou até que o padre, vencido pelo sono, o deixasse cair de um lado.
Era uma biografia de São Francisco, a qual ele examinou furtivamente, sentindo que ao fazê-lo cometia um pequeno roubo.
Juntava as sílabas, e à medida que o fazia, o desejo de compreender tudo o que havia naquelas páginas o levou a repetir a meia voz as palavras capturadas.
O padre despertou e observou, divertido, António José Bolívar com o nariz metido no livro.
— É interessante? — perguntou.
— Desculpe, eminência.  Mas eu o vi dormindo, e não quis incomodá-lo.
— Interessa-lhe? — repetiu o padre.
— Parece que fala muito de animais — respondeu timidamente.
— São Francisco amava os animais. Amava todas as criaturas de Deus.
— Eu também gosto deles.  À minha maneira. O senhor conhece São Francisco?
— Não.  Deus me privou de tal prazer. São Francisco morreu há muitíssimos anos. Quer dizer, deixou a vida terrena e agora vive eternamente junto ao criador.
— Como sabe disso?
— Porque li o livro. É um dos meus preferidos.
O padre enfatizava as palavras acariciando a brochura. António José Bolívar o olhava enlevado, sentindo uma ponta  de inveja.
— O senhor leu muitos livros?
— Uma porção. Antes, quando ainda era jovem e os meus olhos não se cansavam, devorava toda a obra que chegasse às minhas mãos.
— Todos os livros tratam de santos?
— Não. No mundo há milhões e milhões de livros. Em todas as línguas, e abrangem todos os temas, inclusive alguns que deveriam estar proibidos aos homens.
António José Bolívar não entendeu aquela censura e continuou com os olhos cravados nas mãos do padre, mãos gorduchas, brancas sobre a brochura escura.
— De que falam os outros livros?
— Já lhe disse. De todos os temas. Há livros de aventuras, de ciência, histórias de seres virtuosos, de técnica, de amor…
O último interessou-lhe. Conhecia do amor aquilo que ouvia nas canções, especialmente nos pasillos cantados por Jurito Jaramillo, cuja voz de guaiaquilenho pobre, às vezes escapava de um rádio de pilhas tornando os homens taciturnos. Segundo os pasillos, o amor era como uma picada de um insecto invisível, mas procurado por todos.
— Como são os livros de amor?
— Temo que não lhe possa  falar disso. Não li mais que  um par.
— Não importa. Como são?
— Bem, contam a história de duas pessoas que se conhecem, se amam e lutam para vencer as dificuldades que os impede de ser felizes. ”
Luís Sepúlveda, in Um velho que lia romances de amor , tradução de Josely Vianna Baptista, São Paulo, Editora Ática: 1995, pp 42-43.

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