Há horas em que as coisas nos contemplam, e estão por um fio a comunicar connosco. Às vezes é um nada, um momento de êxtase em que distintamente ouvimos os passos da vida caminhando.(…) Um pormenor que o interesse entranha-se-lhe na alma para sempre, como um perfume que nunca mais se esvai…
"O Verão era sempre um tempo diferente. O tempo das férias em que estávamos todos juntos. Tempo que era dividido entre a quinta e a praia.
A quinta era abundante em água, além de um poço com uma magnífica nora, havia um tanque enorme que dava para outro mais pequeno. O tanque grande correspondia às piscinas que tanto se banalizaram nos tempos hodiernos.
Toda a zona dos tanques era coberta por um telhado, ou seja , por um telheiro com traves de madeira e coberto por telhas. Ficava junto ao lagar, onde se fazia vinho com as uvas da quinta.
Era uma zona muito fresca, no tempo quente. A mãe, que nadava muito bem, deixava-nos mergulhar nessas águas. Tomávamos uns banhos prodigiosos sob a protecção e vigilância materna. Os mais velhos já nadavam sozinhos , pelo que permaneciam mais tempo no tanque. Os mais novinhos tomavam banho, um de cada vez, com a segurança dos braços da minha mãe.
Era um dos maiores prazeres da minha infância. Aquela água límpida, que jorrava de uma grande bica, constituía uma dádiva que me deliciava. Ainda sou capaz de recordar os sons da música que se produzia com o incessante fluir da água. Era tudo tão harmonioso que me pensava no paraíso.
Quem me dera poder caçar esse tempo, não com as redes de Nabokov para caçar borboletas. Queria apanhá-lo para sempre, vivo e eterno, na prodigalidade com que me presenteou na infância, no tempo dos prodígios, no paraíso. Talvez me acontecesse o que Rilke tão bem “verseja”: Se das estrelas chegasse agora, o anjo imponente / e descesse até aqui,/ as pancadas do meu coração abater-me-iam.
Mas o tempo só regressa às palavras.
O Verão era realmente um tempo que trazia muita actividade à quinta. As colheitas de alguns frutos e a mais importante que criava grande azáfama - a vindima. Os trabalhadores aumentavam, nesta época.
Cestos que se enchiam de uvas, todos os dias. A Fernanda dava-nos alguns cestos mais pequenos e permitia que nos juntássemos aos trabalhadores na apanha da uva. Encher um cesto era uma proeza que festejávamos. Despejá-lo no cesto grande e voltar a encher um outro, representava uma vitória que se ia somando em muitas.
Homens e mulheres trabalhavam lado a lado e enchiam-se de cuidados connosco. Eram excelentes guias dos nossos passos e os melhores animadores do dia. Como gostava de circular entre eles.
Estar ali com os trabalhadores, que se agregavam em cânticos populares, era para todos nós uma autêntica festa. Muitas das cantigas populares que sei cantar, aprendia-as nas vindimas. Desde o mais puro canto popular ao folclórico nacional ou regional, e ao cantar à desgarrada, tudo se lançava naquelas vozes maduras e cheias de matizes ancestrais. O mais requintado cantar acontecia no pisar da uva , no lagar. Aí, era o ponto mais alto da festa vindimeira.
Tudo acontecia quase no fim do Verão. A vindima como que encerrava a época estival. Era um tempo que nos ligava fortemente à terra , num processo telúrico de muitas sensações. Após a recolha da uva, que nos permitira enterrar os pés na terra e sentir nas mãos o peso dos frutos, era a vez do olfacto que se alargava na mistura dos vapores que se soltava no pisar da uva até ao mosto. E o festim das cores, que se harmonizavam em gradações várias, concomitantes com as diferentes etapas , enchia os meus olhos de criança. Um esplendor que exercitava o meu olhar para a descoberta do belo.
Homens de calças arregaçadas e pés descalços saltavam para o lagar e, num ritmo que fora improvisado num passado longevo, pisavam a uva que se liquidificava conforme o tempo se ia diluindo. Ora em rodas circundantes, que se encaixavam umas nas outras , ora em filas paralelas, acertavam-se de braços entrelaçados como que a repartir um movimento que se exercia dinâmico, cadenciado e assertivo em toda a área do lagar.
Chegava , então, o tempo maior do cântico. O cantar à desgarrada impunha-se como o exercício nobre que os homens cumpriam com um saber que lhes era natural.
Para mim , todo este cerimonial era um espectáculo fascinante. Passava horas a contemplá-lo, sem que outra actividade me despertasse interesse ou me deixasse envolver. Nem a Fernanda era capaz de me arrancar dali, quando já a noite ameaçava e eu me escapava , escada abaixo, até ao lagar para continuar a viver aquela festa. Apenas, os pais me conseguiam retirar daquele lugar.
Os homens trabalhavam por turnos que se substituíam alternadamente. O Joaquim , o capataz, trazia sempre , nesta altura, o filho que tinha cerca de doze anos. Também ele pisava as uvas e cantava como se o fizesse desde o nascimento.
A nós, só muito mais tarde, nos foi permitido entrar no lagar. A sensação que se experimenta é estranha. Os pés enterram-se e tornam-se exteriores ao corpo. Quase que se autonomizam , num movimento que se desencadeia e que exige independência. Articulam--se segundo os ditames seculares por que são regidos em grupo.
Tudo se processava ritmadamente até que a camada superior mostrasse sinal de fermentação. Para nós, crianças, isso era a resiliência das uvas que transformadas em bolhas, tentavam resistir antes de se converterem no vinho que seria armazenado na cave , em pipas e garrafas de vidro. Tinham-nas condenado à penumbra, após uma vida de esplendor, em corpos sedutores e coloridos, ao ar livre."
Maria José Vieira de Sousa, in "O Livro que já escrevi", Maio de 2018, pp.63-68
Infância..., aldeia mágica da vida. Um tempo tão fugaz e tão imenso. É como dizer..., era uma vez um tempo chamado nunca mais. E como diz a música: “a gente era obrigado a ser feliz”. Em mim também ficou tatuada toda uma marítima lembrança. As auroras de verão nascendo atrás das águas, as velas voltando, as redes sobejando e tudo e tanto que cantaram os meus versos. Que saudável inveja de você Maria José. Do talento com que colhestes a memória, para nos trazer esses tesouros que tantos de nós desterramos no esquecimento. Manoel de Andrade
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