sexta-feira, 10 de maio de 2019

A Sexta-Feira Sangrenta


1968: Uma revisão       
A Sexta-Feira Sangrenta
por Manoel de Andrade
“O ano chegava ao seu último quartel respirando o pressentimento de uma surda e sinistra ameaça por trás dos biombos do poder. O país, desde o golpe militar de 64, seguia sua trajetória nebulosa e imprevisível. Sentiam-se os agudos sintomas sociais de uma crise potencial que, dia a dia, ia cavando imperceptíveis trincheiras e radicalizando suas posições para o enfrentamento. As palavras, no plano político, haviam perdido a sua opção pelo diálogo e os atos e os fatos iam desfigurando sempre mais a face institucional da nação. Sob o pano de fundo deste cenário inquietante, um fenómeno social surge desafiante na ribalta nacional. O movimento estudantil que a partir de 1964 fora sistematicamente reprimido, com a própria sede da União Nacional dos Estudantes, saqueada e incendiada no mesmo dia do golpe, retoma gradativamente o seu espaço político. A UNE, a partir de 1966, desafiando proibições e ameaças, passa a realizar clandestinamente seus congressos e, a partir de 1968, integrando-se a uma onda mundial de protestos estudantis, ocupa no Brasil o principal papel no palco das grandes manifestações populares contra a Ditadura Militar.
O ano de 1968 foi um marco indelével em minha vida e creio que na vida de qualquer cidadão consciente, no Brasil e no mundo. Eu terminara o curso de Direito em 66 e cursava o segundo ano de História na Universidade Federal do Paraná. Nosso calendário estudantil iniciara o ano letivo marcado pelo luto nacional. Ele tinha apenas 17 anos e seu sangue de infante tingiu, indelevelmente, nossas vidas. Edson Luis de Lima Souto foi morto em março, no Rio de Janeiro, marcando o início de uma movimentação estudantil que envolveria, ao longo do ano, toda a vida nacional e que culminaria com a invasão e ocupação militar da Universidade de Brasília, em setembro e, em outubro, com a prisão de 920 estudantes no Congresso da UNE, em Ibiúna. Na sexta-feira, 29 de março a cerimónia do seu sepultamento partiu da Cinelândia com um acompanhamento calculado em 50 mil pessoas. A vanguarda do cortejo  ostentava uma faixa onde se lia: “Os velhos no poder, os jovens no caixão”. O país estava perplexo. Como que acordava de um longo  pesadelo. Parecia que aquela revolta, por tudo o que estava acontecendo no Brasil desde 64, fora preguiçosamente protelada, que cochilara por quatro anos e que agora finalmente despertava. No dia 4 de abril, muitos de nós, estudantes e  intelectuais, aqui em Curitiba, aguardávamos, apreensivos, o desfecho do que seria a tão anunciada missa de sétimo dia pela alma de Edson Luiz, na Igreja da Candelária. Às 18 horas, a Praça Pio X estava totalmente tomada pelos cavalarianos da PM e por fuzileiros navais, somando cerca de 2.000 soldados e mais os agentes do DOPS, todos em volta da igreja sitiada.
A celebração começou tranquila, com um estudante lendo o segundo versículo do capítulo 12, da Carta de Paulo de Tarso aos Romanos:
E não vos conformeis com este tempo, mas transformai-vos moralmente, renovando vosso espírito para compreender a vontade de Deus, que é boa, agradável e perfeita.
Se estas recomendações evangélicas  tiveram alguma importância para um ateu como Otto Maria Carpeaux, para um trotskista como  Mário Pedrosa, para um comunista como Oscar Niemeyer ou para os incrédulos, agnósticos, e esquerdistas de tantas dissidências ali presentes, é apenas uma singela ilação e, por isso mesmo, sem nenhuma relevância. Contudo, é relevante afirmar que todos estavam ali reunidos num gesto grandioso de solidariedade, acima de qualquer confissão religiosa ou ideologia política. Ali entraram, arriscando a própria pele, para prestar a última homenagem ao primeiro jovem mártir da Ditadura que, uma semana atrás, lutando contra o fechamento do restaurante Calabouço, tombara com o peito perfurado pela bala de um PM. Dentro da igreja se comprimiam seiscentas pessoas amedrontadas, divididas entre as que confiavam no amparo divino, no bom senso da polícia ou magnetizadas por maus pressentimentos. Quando a missa chegava ao fim, os ruídos dos cascos dos cavalos e o ronco de um avião se ouviam entre as altas naves do templo, como  se ouvia também um surdo murmúrio  prenunciando o angustiante calvário da saída. Na cabeça de muitos ali presentes pairava a lembrança da missa na manhã daquele mesmo dia, encomendada pela Assembleia Legislativa em memória de Edson Luis, e cuja saída, calmamente iniciada, foi subitamente cercada pela Cavalaria, numa sinistra e calculada operação de encurralamento ante as portas já fechadas da igreja. Foi uma pancadaria ou um massacre, segundo os jornais da época. Agora, ao anoitecer, se redesenhava uma nova via crucis. Os portões da igreja são novamente bloqueados pela Cavalaria da Polícia Militar. Na saída, o bispo auxiliar da cidade pede calma e os quinze padres  de mãos dadas formam dois cordões  por onde a multidão começa a sair espremida.  As pessoas deixam a igreja com os olhares fixos nos cavalos e nos cavaleiros. Há em toda a praça uma tensão insuportável, alimentada pelo  pânico das “vítimas” e a impaciência dos “ algozes”. E eis que surge o impasse, uma fronteira intransponível. Um limite para todos os passos. Ouve-se a ordem: — Desembainhar!  Em seguida os gritos ordenam: — Recuem, recuem…! Aqui ninguém passa…! Diante da massa humana acuada, os padres, num gesto de imensa coragem, levantaram os braços e, em nome de Deus, se dirigem ao major dizendo que aquela manifestação não era uma passeata, que todos queriam apenas voltar para suas casas. Foram minutos intermináveis entre virtuais ofensores e ofendidos. Ninguém mais ousou intermediar o  diálogo. Havia ali dezenas de intelectuais ilustres, políticos, líderes estudantis, professores universitários. Todos estavam paralisados. Finalmente, ante a iminência de um massacre, ouviu-se uma frase que soou como uma graça recebida, como uma resposta a tantas preces, explícitas ou inconfessáveis, mas que por certo foram  ali silenciosamente pronunciadas, no imperscrutável sacrário da alma: — Dispersar, dispersar… A ordem é dispersar. Os sacerdotes, como que assistidos por uma força invisível, coordenaram a saída disciplinada e silenciosa pela calçada.
Postados num cruzamento da Avenida Rio Branco,  todos paramentados, ali permaneceram até que passassem, sãos e salvos, todos os “sobreviventes” do ato religioso. Por certo, em suas orações, daquela esquina para a frente entregavam a sorte daqueles rapazes e moças, nas próprias mãos de Deus, sem imaginar que mais adiante muitos deles seriam brutalmente espancados e presos.   A classe estudantil em 68 simbolizava o mais belo estandarte de luta que se empunhava contra a Ditadura Militar. No embalo dos acontecimentos de maio, em Paris, que acendeu o pavio da revolta estudantil no mundo inteiro, aqui também tivemos, em junho daquele ano, no Rio de Janeiro, as  nossas barricadas de Nanterre, levantadas na  Avenida Rio Branco e nas ruas México e Graça Aranha. Os protestos contra a repressão começaram no dia 19, e chegaram ao auge do enfretamento no dia 21, que ficou conhecido como a “Sexta-Feira Sangrenta”. Logo depois das 13 horas os fatos se precipitaram num desesperante torvelinho de violência. Os ânimos, sobrecarregados pela repressão oficial de três dias, uniram populares e estudantes que avançaram contra os batalhões da polícia. O centro do Rio se transformou num original cenário de batalha, com gente correndo em todas as direções. Em dado momento surge a Cavalaria e depois os batalhões de choque que, que pari passu, vão ocupando a Avenida Rio Branco até encontrar as barricadas.  A polícia, sob a chuva dos mais variados objetos atirados do alto dos edifícios, avança abrindo fogo e ultrapassa a primeira barricada. Os agentes do DOPS chegam atirando contra os manifestantes em disparada pela rua, e contra os que se postam nas janelas dos prédios. Zuenir Ventura, numa das mais dramáticas referências que se escreveu sobre aquele ano, ao registar a memória daquele dia, no seu livro 1968: O ano que não terminou, relata que:
Ao contrário do movimento francês, não se lutava no Brasil contra abstrações como a “sociedade de opulência” ou a “unidimensionalidade da sociedade burguesa”, mas contra uma ditadura de carne, osso e muita disposição para reagir. As barricadas de Paris talvez não tenham causado  tantos feridos quanto a “Sexta-Feira Sangrenta” do Rio, para citar apenas um dia de uma semana que ainda teve uma quinta e uma quarta quase tão violentas. [...]  Durante quase dez horas, o povo lutou contra a polícia nas ruas, com paus e pedras, e do alto dos edifícios, jogando garrafas, cinzeiros, cadeiras, vasos de flores e até uma máquina de escrever.
 Carlos Scliar, Helio Pellegrino, Clarice Lispector, Oscar Niemeyer,
 Glauce Rocha, Ziraldo e Milton Nasciment
o (da esquerda para a direita) .
O saldo doloroso dos fatos ocorridos na “Sexta-Feira Sangrenta” deixou uma declarada indignação entre estudantes,  intelectuais e  em muitas categorias profissionais da população carioca. Como conter tanta revolta? Aquilo não poderia ficar por isso mesmo. Artistas, jornalistas, escritores e professores começaram a articular alguma forma de manifestação que lavasse a alma de tantos ofendidos. Naquela mesma noite algumas reuniões paralelas foram feitas e nelas protagonizaram as ideias de Ferreira Gullar, Gláuber Rocha, Arnaldo Jabor, Hélio Pellegrino, Cacá Diegues, Luís Carlos Barreto, Ziraldo  e outros. Na manhã seguinte, no Salão Nobre do Palácio Guanabara, o psicanalista e escritor Hélio Pellegrino, à frente de trezentos intelectuais, entre os quais Oscar  Niemeyer, Clarice Lispector, Paulo Autran, Tônia Carrero, Milton Nascimento, Nara Leão etc..., solicitava ao Governador Negrão de Lima a autorização oficial para realizar uma passeata pacífica, no centro do Rio, sem a presença dos policiais na rua. Depois de uma longa e difícil negociação, em que foi exigida, também, a libertação de presos políticos – numa referência ao diretor de teatro Flávio Rangel e ao arquiteto Bernardo Figueiredo – o Governador, esmagado pela argumentação de Pellegrino, concordou em liberar a passeata. Na quarta-feira, 26 de junho de 1968, depois de três dias de tensas negociações com autoridades municipais e federais pela segurança do trajeto, o Rio de Janeiro iria assistir  uma das maiores, senão a maior, manifestação popular de sua história: A Passeata dos Cem Mil."
( continua)
Manoel de Andrade, in “ As Palavras no espelho”, Escrituras Editora e Distribuidora de Livros Ltda, São Paulo, Brasil, 2018

Manoel de Andrade nasceu a 3 de Novembro de  1940, na cidade de Rio Negrinho, no Estado de Santa Catarina. Na juventude, radicou-se em Curitiba, formando-se em Direito.  Procurado pela Ditadura, obrigou-se a sair do Brasil em Março de 1969, perseguido pela panfletagem do seu poema Saudação a Che Guevara. Na década de 70, cruzou 16 países da América, declamando os seus versos, proferindo palestras e promovendo debates sobre a importância política da arte e da Literatura. Expulso da Bolívia em 1969, preso e expulso do Peru e da Colômbia no ano seguinte, o seu primeiro livro, Poemas para la libertad, foi publicado  em La Paz, em 1970, e reeditado na Colômbia, EE.UU. e Equador. Publicou também Canción de amor a  la América y otros poemas, em 1971, na Nicarágua e em El Salvador.
Em 2007, publica, no Brasil, Cantares seguido de Poemas para a Liberdade, edição bilingue, em 2009.
Regista as memórias do tempo do exílio , em 2014 , no volumoso e  magnífico livro,   Nos rastros da utopia: uma memória crítica da América Latina dos anos 70.   
O excerto ,que acabámos de transcrever , pertence à sua última obra, As palavras no espelho, publicada em 2018.

2 comentários:

  1. Obrigado pela postagem. É como desfraldar a mesma bandeira que empunhamos há cinquenta anos. Hoje, no Brasil, não temos mais uma esquerda mobilizada, e contudo, o fantasma do macarthismo toma corpo, assustando o nosso povo.

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  2. O esquecimento do terror permite que vá crescendo e regresse na sombra dos dias.
    Obrigada por nos permitir não esquecer.

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