segunda-feira, 20 de maio de 2019

1968: A Passeata dos Cem Mil

 
                         

 1968: Uma revisão (II)
1968: A Passeata dos Cem Mil
por Manoel de Andrade
"A estratégica aparição daquele estudante de 23 anos provocou uma apoteose de gritos e palmas na imensa multidão que, por volta do meio-dia, ocupava inteiramente a Praça Floriano Peixoto, na Cinelândia. O presidente da UME, Vladimir Palmeira, disfarçado pelo penteado, barba feita, terno e gravata, subiu as escadarias da Assembleia Legislativa, e com alguns gestos interrompeu as palmas, pediu silêncio e que todos se sentassem e, em seguida, começou o seu primeiro discurso do dia dizendo: 
 — Pessoal, a gente é a favor da violência quando ela é aplicada para fins maiores. No momento, ninguém deve usar a força contra a Polícia, pois a violência é própria das autoridades, que tentam por todos os meios calar a voz do povo. Somos a favor da violência quando, através de um processo longo, chegar a hora de pegar nas armas. Aí, nem a polícia, nem qualquer outra força repressiva da ditadura, poderá deter o avanço do povo. 
  Enquanto os discursos se sucederam mais e mais populares iam se juntando à concentração. De todas as partes chegavam comitivas de estudantes com faixas e bandeiras. Emissários e “batedores” saíam e chegavam com notícias sobre a segurança do percurso da passeata prestes a começar. Por trás de toda essa organização estavam os estudantes Franklin Martins e Marcos Medeiros, comandando outras lideranças estudantis encarregadas de controlar todos que participavam do ato, evitando, com isso, qualquer incidente com pessoas  infiltradas. No final dos discursos Vladimir Palmeira tira o paletó, afrouxa a gravata e retoma a palavra para dizer: 
— Nós queremos os cadáveres dos estudantes que foram mortos durante as últimas manifestações. Todos viram seus corpos, ao vivo e nos jornais, e não é possível que o governador e as outras forças repressivas continuem a esconder os seus corpos para iludir a população. 
  Seu discurso foi interrompido pelo ronco ensurdecedor dos aviões da FAB que passavam em voo rasante em franca provocação. Com isso terminaram os discursos e começou a passeata. A multidão comandada pelos estudantes e de mãos dadas, seguiu ordeira e alegre para a Avenida Rio Branco, cujo trânsito havia sido interditado pelas autoridades. As grandes lideranças estudantis do país estavam ali representadas por Luís Travassos, e José Roberto Arantes, respectivamente presidente e vice-presidente da UNE. Pela grande avenida desfilava uma massa humana sempre mais engrossada pelo imenso fluxo de pessoas que vinham da Cinelândia. Como ao longo de todo o percurso houve provocações de agentes do DOPS e de policiais, os líderes estudantis tiveram o cuidado de reiterar aos manifestantes que mantivessem a calma e a vigilância. Aquela inacreditável massa humana penetrou pela tarde atravessando o centro do Rio num gesto grandioso de indignação, mas sobretudo de esperança no retorno ao estado democrático de direito. 
Quando chegou à Candelária, Vladimir subiu na capota de um carro e disse: 
— Este lugar tem um significado muito grande para nós. Na missa de Édson, foi aqui que fomos violentamente reprimidos. Hoje o panorama é diferente. Prova de que a potencialidade de luta popular é maior do que as forças da  repressão. Hoje damos uma demonstração de força e de fraqueza ao mesmo tempo. Temos força para retomar a praça, mas ainda não podemos tomar o poder que eles usurparam. 
   Naquele longo percurso que se entende desde a Candelária até a Rua Uruguaiana, toda a Avenida Presidente Vargas foi ocupada pela imensa multidão em movimento. Elio Gaspari, referindo-se ao fato na sua Ditadura envergonhada, descreve:
Olhada, a passeata era uma festa. Manifestação de gente alegre, mulheres bonitas com pernas de fora, juventude e poesia. Caminhava em cordões. Havia nela a ala dos artistas, o bloco dos padres (150), a linha dos deputados. Ia abençoada pelo cardeal do Rio de Janeiro, o arquiconservador D. Jaime Câmara, que em abril de 1964 benzera a Marcha da Vitória. Muitas pessoas andavam de mãos dadas. Todo o Rio de Janeiro parecia estar na avenida. A serena figura da escritora Clarice Lispector e Norma Bengell, a desesperada de Terra em Transe; Nara Leão, Vinicius de Moraes e Chico Buarque de Hollanda, que com a poesia “Carolina”, e seus olhos verdes, encantava toda uma geração. Personagens saídos da crónica social misturavam-se com estudantes saídos do DOPS. Do alto das janelas a cidade jogava papel picado. [...] a Passeata dos Cem Mil saiu da Cinelândia, jovem, bela e poderosa. [...] Depois de parar gloriosamente na Presidente Vargas, vagou emagrecida até os pés da estátua de Tiradentes, em frente ao prédio da Câmara dos Deputados. Lá Vladimir Palmeira, o mais popular dos dirigentes estudantis, ameaçou: A partir de hoje, para cada estudante preso, as entidades estudantis promoverão o encarceramento de um policial.   Depois de passar pela Sete de Setembro e o Largo da Misericórdia, a passeata chegou à Praça Tiradentes onde se seguiram uma dezena de discursos das lideranças estudantis, sindicais e intelectuais. Ali mesmo foi proposta e criada uma comissão com representação dos intelectuais, dos professores, do clero, dos estudantes e das mães para intervir  junto às autoridades pela libertação dos estudantes presos nas recentes manifestações.   
     Passava das cinco da tarde quando os estudantes queimaram uma bandeira americana em frente do Palácio Tiradentes. Ali mesmo Vladimir retomou a palavra para encerrar a manifestação num tom de advertência, dizendo: 
— Voltaremos sempre para exigir nossos direitos. Pacificamente, se não formos reprimidos pela Polícia. Agressivamente, se tentarem nos agredir, como fizeram algumas vezes. 
   Neste ano de 2008, há quarenta anos da Passeata dos Cem Mil, podemos ter uma clara perspectiva dos fatos e analisar aquele acontecimento como um dos mais belos e corajosos gestos políticos da cidadania recrutando os mais lúcidos representantes da intelectualidade brasileira que marcaram, com a sua presença, as mais variadas tendências da esquerda nacional. Este fato por si só nos convida a tirar algumas ilações sobre a importância do debate político daquela época em que os termos “revolucionário” e “reformista” eram usados com ironia em nossos bancos académicos. Nesse mesmo enfoque, não se podia confundir “revolucionário” com “rebelde sem causa” sem reconhecê-los, respectivamente, pela legítima contradição dialética e pela mera formalidade das ideias. Ainda nesse contexto é pertinente relembrar que, na célebre Passeata do Rio de Janeiro, havia uma aberta disputa programática entre os cartazes e slogans das dissidências da esquerda, e quando os radicais gritavam: “Só a luta armada derruba a ditadura”, os militantes do Partidão respondiam: “Só o povo organizado conquista o poder”. Isto vale dizer que cada grupo disputava no grito a hegemonia daquele extraordinário acontecimento político. Eram já os efeitos das grandes cisões que estavam acontecendo no Partido Comunista. Os primeiros representavam os estudantes que já tinham feito sua opção pelo enfrentamento direto com o regime e sonhavam com uma pátria socialista dirigida pela classe operária. Os segundos encaravam o fenómeno revolucionário como um processo lento onde a ruptura com o sistema e a consequente transformação estrutural da sociedade ocorreria como resultado da organização das próprias forças sociais. Uns seguiam a orientação de Cuba e outros, a de Moscou. 
Para quem foi estudante na década de 60, é estimulante recordar que ninguém queria ficar à margem do engajamento político, e era uma ofensa esmagadora ser chamado de “reacionário”, ou seja, ser de direita. Na verdade todo aquele saudável “romantismo” deixou, no que tange à mera postura intelectual, uma imensa saudade. Quem não tinha na parede do seu quarto uma gravura do Che, de Mao ou de Ho Chi Minh? Como ser um autêntico radical de esquerda sem  conhecer a “teoria do foco” de Régis Debray, sem conhecer a história da Revolução Russa, sem ter lido os patriarcas do pensamento revolucionário, sem ter compulsado Marcuse, Lukács, Gramsci. Como criticar um reformista sem conhecer os insuperáveis argumentos de Rosa Luxemburgo. Era tudo isso e muito…, muito mais, porque a bibliografia revolucionária era enorme e também não se podia deixar de ler a nossa brilhante “prata de casa” como Caio Prado Junior, Celso Furtado e Nelson Werneck Sodré.  
  E eis porque hoje, nesse imenso distanciamento, ao relembrarmos aquele 26 de junho de 68, relembramos também que todos os estudantes brasileiros marcharam, em espírito, com os estudantes cariocas, e a Passeata dos Cem Mil ficou na história como uma referência indelével do poder de mobilização dos estudantes e da força que o pacifismo pode ter quando uma ampla frente popular pode ser bem organizada e bem representada. Naquele momento, o Movimento Estudantil atuou como o mais legítimo porta-voz da sociedade contra a Ditadura. Ele representava, por um lado, a radicalização de um conflito expresso pelas contradições contidas nas frustrações da classe média emergente em sua busca de um lugar ao sol. Por outro lado representava as tensões crescentes que essa mesma classe média – que em parte apoiou o golpe militar – e a classe operária passam a ter com o poder, cada vez mais agravadas pelo estado de exceção e pelo apoio dos segmentos mais conservadores das classes dominantes (leia-se a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, apoiando, em 64, o golpe militar). Embutida neste amplo questionamento estudantil estava também a velha estratégia do capitalismo moreno, sempre empenhado em manter uma política educacional dependente, promovendo uma educação académica alienante ao limitar a capacidade crítica do indivíduo para questionar o mundo em suas contradições sócio-políticas e ideológicas e, consequentemente, formar profissionais que se amoldem culturalmente ao sistema. 
  Por trás dessa invisível feição sociológica o movimento queria, na verdade, mostrar, explicitamente, a sua mais bela imagem: a face despojada do idealismo empunhando pacificamente o lábaro da justiça e da liberdade.
    Contudo, seus sonhos, legitimados por essa fé e esse compromisso, não puderam se realizar. À medida que o ano chegava ao seu final, iam-se esgotando as esperanças de se reconquistar o estado de direito por meios democráticos. O nosso drama político representava as últimas cenas do seu primeiro ato e a decretação do AI-5 baixou as negras cortinas ante uma plateia assustada. Os espectadores mais atentos não esperaram para ver como seria o segundo ato. Sabiam que ali se apagavam as últimas luzes da ribalta e somente as sombras iriam invadir o palco da tragédia. Foi a gota d’água para que muitas organizações de esquerda se decidissem pela luta armada. A partir daí a repressão caiu como uma rede sobre a classe estudantil e suas principais lideranças não encontraram outro caminho para a sua militância política fora da clandestinidade. Seus sonhos de mudar o mundo começaram muito antes, quando em 1961 a UNE fundou o Centro Popular de Cultura (CPC) cujo propósito era despertar pacificamente, com a arte, a consciência política do povo. Sob a direção do dramaturgo Oduvaldo Viana Filho foram encenadas dezenas de peças, publicados livros, produzidos filmes e discos e promovidos shows, cursos e debates. Nessa saga cultural sem precedentes da nossa história se engajaram, ao lado de estudantes, artistas e intelectuais, figuras emblemáticas do teatro brasileiro como Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri. Quando as sementes dessa utopia começavam a abrir suas flores e a colher seus frutos com a presença cada vez mais contagiante da população em seus espetáculos, o golpe militar de 64 colocou a UNE na ilegalidade e toda essa fogueira de sonhos e esperanças, cujo imenso clarão iluminou a geração de nossos anos dourados, foi abafada bruscamente pelo manto tenebroso da opressão. Quando no fim de 68 arrancaram das mãos do Movimento Estudantil as suas últimas bandeiras democráticas, não restou a eles outra expressão de bom combate que não fosse a luta armada. O que aconteceu depois, todos nós sabemos. Centenas deles foram presos, barbaramente torturados e mortos nas prisões do Regime Militar. Deram a vida para que sobrevivesse um sonho e para que continuassem abertas as trincheiras de luta que escavaram, em nome de um homem novo e de um mundo melhor. Esta é a triste memória que a história recente do país tenta resgatar pelos depoimentos dos que sobreviveram, pela escavação dos cemitérios clandestinos e na voz silenciosa dos desaparecidos. Eu bem quisera enumerar aqui os nomes da bravura. Dos que resistiram até o último golpe e caíram aureolados com a coroa do martírio. Mas todos os seus nomes somente podem ser escritos com a dimensão da palavra: legião. Porque sempre faltaria ainda um nome ou um codinome de alguém cujo coração materno poderia derramar a derradeira lágrima, motivada pelo meu esquecimento."(continua)
 Manoel de Andrade, in “ As Palavras no espelho”, Escrituras Editora e Distribuidora de Livros Ltda, São Paulo, Brasil, 2018, pp 25-32

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