"O ano de 1968 tinha ainda pela frente um longo percurso assinalado pela importância dos fatos políticos que marcavam sua excepcionalidade na recente história do Brasil e do mundo. Entre nós, brasileiros, o que estava por trás desses dos fatos foi, em grande parte, a decisão das esquerdas de se armarem e saírem para o confronto direto com a Ditadura. Cada vez mais afastadas do Partido Comunista (PC) e ideologicamente divididas entre Moscou e Pequim, elas perceberam que todos os caminhos das lutas de liberação nacional começavam e terminavam no próprio território latino-americano. As trincheiras dessa luta foram escavadas pelo continente inteiro. Começaram no extremo sul, em 63, com os Tupamaros uruguaios, e com o peruano Hugo Blanco, que em maio daquele ano caiu no vale do Cuzco. Em 65, Héctor Béjar rompe com o PC e retoma a guerrilha peruana. Essa imensa trincheira abre, ainda em 65, novos sulcos pelas mãos dadas dos socialistas e comunistas chilenos em torno do MIR. Na mesma época o venezuelano Douglas Bravo, expulso do Partido Comunista, definia o conceito de Revolução Bolivariana dentro da estratégia guerrilheira com o apoio de Fidel Castro. Em 15 de fevereiro de 65 o padre Camilo Torres morre em combate à frente do Exército de Libertação Nacional na Colômbia. Em 66 o Comandante Turcios Lima comandava a luta feroz contra o Exército e os grandes latifúndios na Guatemala. Em 67, a Frente Sandinista de Libertação Nacional decide declarar a guerra revolucionária contra a somozismo, na Nicarágua e naquele ano a bandeira cravada em Ñancahuazú por Che Guevara e a simbologia gloriosa de sua morte em combate são os traços indeléveis de uma paisagem revolucionária que, iluminada pelas luzes ofuscantes do Caribe, iriam agora abrir suas trincheiras na esquerda urbana do Brasil.
No começo de 68 se discutia muito por aqui o livro Revolução na Revolução de Régis Debray. Publicado em inícios de 67, em Cuba, numa edição de duzentas mil cópias, a obra se espalhou pela América Latina e os primeiros exemplares que chegaram ao Brasil foram enviados pelos nossos exilados de 64, do Chile. Debray, que em meados da década de 60 estivera observando a guerrilha venezuelana comandada por Douglas Bravo, – onde conheceu sua mulher, a então guerrilheira e hoje antropóloga Elisabeth Burgos, tristemente célebre pela falsa biografia que escreveu sobre a gualtemateca Rigoberta Manchú, Nobel da paz de 1998 – foi colher os subsídios para o seu livro, na experiência cubana em Sierra Maestra. O disputado livro Revolução na Revolução, escrito pelo intelectual francês aos 26 anos, propunha a Teoria do “foco guerrilheiro”, baseado num “foco militar rural” como a melhor estratégia para se iniciar a vanguarda da luta revolucionária e a tomada posterior do poder pelas massas.
Neste sentido, e pela sua importância nessa cronologia, é sintomático dizer que em janeiro daquele ano, – apesar da malograda aventura armada de Jefferson Cardin, no noroeste do Rio Grande do Sul, em 65 e do fiasco da guerrilha brizolista de Caparaó, abortada em abril de 67 –, o Partido Comunista do Brasil (PC do B), começava a montar sua base guerrilheira na margem esquerda do Rio Araguaia, e por aquelas matas já transitava meia dúzia de seus quadros disfarçados. Entre eles, o “Osvaldão”, o Maurício Grabois e o grande João Amazonas. Por outro
lado a Ação Libertadora Nacional (ALN), de Carlos Marighella, – que após participar da reunião da OLAS em meados de 67 , em Cuba, rompera com o Partidão – buscou seus próprios caminhos e tomou a dianteira, “na ação e na vanguarda” fazendo sua primeira “expropriação” a um carro pagador em novembro de 67 e em março de 68 explodindo uma bomba no consulado americano em São Paulo. Em junho a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), formada de uma dissidência radical da Política Operária (POLOP) e dos remanescentes brizolistas do MNR, explode uma bomba no Quartel General do II Exército. Em julho, o Comando de Libertação Nacional (COLINA), também uma dissidência da POLOP, faz uma equivocada execução política no Rio de Janeiro confundindo o major alemão Edward von Westernhagen, com o major boliviano Gary Prado, tido como o matador de Che Guevara. Em agosto a ALN faz uma nova “expropriação” ao vagão pagador do trem Santos-Jundiaí. Entre muitas outras ações realizadas em 68 por comandos revolucionários, destaca-se o julgamento e a execução pela VPR do capitão americano Charles Chandler, no mês de outubro em São Paulo, tido, pela organização, como agente da CIA e torturador de vietcongues, no Vietnã. Assim as organizações de esquerda tomaram a ofensiva na luta revolucionária tanto nas ações com objetivos logísticos para a compra de arma e de apoio aos seus quadros clandestinos, como nessas discutíveis execuções, ações de caráter político retaliatórias que não tiveram os efeitos publicitários que buscavam. Os sequestros, porém, que tiveram início em setembro de 69 com o embaixador Elbrick, eram ações políticas inteligentes e justificáveis para libertar prisioneiros barbaramente torturados. Neste sentido a conotação que o Regime dava para o termo terrorismo ao referir-se às ações políticas de sobrevivência da esquerda revolucionária era um eufemismo, se comparada com os planos diabólicos da Ditadura. O caso Para-Sar, em 68, já prenunciava o que seria a dimensão da tortura e das execuções, com requintes de crueldade, perpetradas pelos órgãos de segurança em todo o país.
Osasco, 1º de Maio da Sé. Liderado por um jovem dirigente, do Sindicato dos Metalúrgicos, José Ibrahim, com apenas 19 anos, |
Outras bandeiras de luta
No amplo contexto deste enfrentamento com a Ditadura muitas outras bandeiras foram levantadas. No plano sindical a mobilização popular começa a mostrar a sua cara em abril de 68 com a greve de Contagem, em Minas Gerais e em maio em São Bernardo do Campo. O grande destaque, contudo, foi dado pela greve de 1º de maio em Osasco, que mobilizou operários, camponeses, estudantes e intelectuais. Os metalúrgicos tomaram a fábrica que depois foi invadida pelo exército e os trabalhadores foram presos.
No plano cultural, a partir de julho o alvo da Ditadura passa a ser a atividade teatral, ainda traumatizada com o desmantelamento, em 64, do Centro Popular de Cultura (CPC). O questionamento político, através da dramaturgia, recuperava-se gradativamente. Lembro-me que, em meados de 65, assisti, aqui em Curitiba , à peça Liberdade, Liberdade. Escrita por Millôr Fernandes e montada pelo grupo Opinião, sob a direção de Flávio Rangel, o espetáculo era protagonizado por Paulo Autran e Tereza Raquel. Com ela se inaugura o teatro de resistência, dramatizando um apanhado de textos retirados da Literatura universal sobre o tema Liberdade onde os atores representavam uma postura explícita de enfrentamento à Ditadura.
Assim, nessa linha de questionamentos o cinema empunha também sua bandeira ideológica e o filme Terra em transe de Glauber Rocha, propõe, hipoteticamente, as duas saídas para a tomada do poder: ou pela lenta organização política das massas, proposta pelo Partidão ou através da luta armada, segundo a Teoria do Foco. Já o propósito do teatro era despertar, a qualquer preço, a consciência política da plateia, como fizera, com irreverente dramaticidade, na apresentação de Roda Viva, em São Paulo. No ritmo dessa saudável disputa, a música popular deixou um rastro de luminosa beleza nas composições de Chico Buarque e sobretudo de Geraldo Vandré, com quem a nação inteira cantou “Caminhando” e “Pra não dizer que não falei de flores”. A nota dissonante nesse engajamento foi dada pelos efeitos anarquistas, e da nascente anti-cultura que os versos de Allen Ginsberg e a prosa rebelde de Jack Kerouac –, os pais intelectuais da Beat Generation – por certo deixaram em parte daquela geração musical, levando a consciência política da juventude de 68, a proibir, com suas vaias, no festival da canção, a música “É proibido proibir”, de Caetano Veloso.
A reação do regime a todo este desafiante fenómeno cultural começa em julho com a participação do CCC (Comando de Caça aos Comunistas) depredando o teatro e espancando os atores da peça Roda-Viva em São Paulo. Posteriormente houve o atentado à peça O burguês fidalgo e a explosão do Teatro Opinião, no Rio. Em outubro, um comando de oficiais do Centro de Informações do Exército lançam uma bomba na Editora Civilização Brasileira, dirigida por Ênio Silveira, que naquele ano publicava um livro por dia, com ênfase para grandes escritores de esquerda como Nelson Werneck Sodré, Hélio Jaguaribe, Isaac Deutscher, George Lukács, Antônio Gramsci, e outros, cujas obras – para ficarmos apenas nas editadas pela Civilização – estiveram na formação da cultura política de toda uma geração.
Naquele 2 de setembro, logo após a pancadaria, invasão e prisão de estudantes na Universidade de Brasília pela PM e pelo DOPS, o deputado carioca Marcio Moreira Alves, fazendo coro com outros parlamentares, denunciou com veemência, no Congresso, a verdadeira operação de guerra usada contra os universitários. Convocou, com seu discurso, os brasileiros a não participar dos festejos de 7 de setembro como um “boicote ao militarismo” e, num rasgo extravagante de eloquência perguntou: Até quando o Exército será o valhacouto de torturadores? A frase que passou quase despercebida pelos seus pares e não teve nenhum destaque da imprensa nacional, provocou, posteriormente, profundos ressentimentos entre os militares. A partir daí começou a fermentar aquele prato cheio que os radicais do Regime estavam esperando como pretexto para oficializar a repressão. Enfim, a despeito da sua boa intenção, o seu discurso gerou o mais grave fato político de 68 e a maior crise institucional na história da Ditadura. Mas quem era afinal o pivô da crise que levou ao AI-5? Marcio Moreira Alves, descendente dos Mello Franco, fizera brilhante carreira como jornalista do Correio da Manhã, trincheira ideológica de onde se esgrimiam contra o Regime Militar os afiados artigos de Paulo Francis, Otto Maria Carpeaux, Antônio Callado, Carlos Heitor Cony, Hermano Alves e dele próprio. Em 66 publicou o livro Torturas e Torturados, denunciando, com farta documentação, as torturas e as inomináveis injustiças que se cometeram nos primeiros meses após o golpe de 64. Com base na ofensa que o discurso de Marcio causara nas Formas Armadas, forças estranhas e inconfessáveis passaram a atuar para precipitar a radicalização do Regime. À medida que o ano terminava se fechava o cerco sobre o próprio Congresso, e por trás desse impasse estava o Ministro da Justiça, Gama e Silva – que, embora não atuasse à sombra do poder, pelos seus insidiosos conselhos ao Presidente Costa e Silva, era a eminência parda do Regime, na época. E assim, em fins de novembro, o pedido para condenar Marcio, já passara pelo Supremo, mas encontrava a resistência dos próprios parlamentares governistas na Comissão de Constituição e Justiça. No dia 10 de dezembro o insuspeitável deputado governista Djalma Marinho, presidente daquela Comissão e amigo leal de Costa e Silva, vai à tribuna, renuncia à presidência e, em seu discurso, citando Calderón de la Barca, diz com todas as letras: “Ao rei, tudo; menos a honra”. Este foi um dos raros gestos de honra política na nossa história parlamentar – numa época ainda sem fisiologismo, pró-labore mensal e varejo do voto – e o aval que muitos deputados da Arena precisavam para derrotar o próprio governo. Na tarde de 12 de dezembro o pedido foi negado por ampla maioria e, no dia seguinte, uma sexta-feira 13 de um ano bissexto, foi promulgado o Ato Institucional nº 5, o AI-5.
O AI-5 levou à prisão centenas de pessoas no país inteiro. Políticos como JK e Carlos Lacerda; juristas como Heleno Fragoso e Sobral Pinto, preso em Goiânia, aos 75 anos de idade; intelectuais como Antônio Callado, Ênio Silveira, Paulo Francis, Carlos Heitor Cony, Glauber Rocha, Millôr Fernandes, e muitos outros.
Aqui no Paraná, e particularmente em Curitiba, não foi diferente. O Coronel Bianco pôs todo o seu pessoal na rua em busca dos subversivos. O golpe, no golpe, quatro dias depois, atingiu em cheio uma reunião regional da UNE, realizada na chamada Chácara do Alemão, no bairro Boqueirão, em 17 de dezembro. Foram presos 42 estudantes e entre eles o cearense João de Paula, um sobrevivente da UNE que não foi a Ibiúna. Caíram também Berto Luiz Curvo, presidente da União Paranaense de Estudantes (UPE), Vitório Sorotiuk, presidente do Diretório Central dos Estudantes (DCE), João Bonifácio Cabral Junior, do Diretório de Direito da PUC, e outros dirigentes. Todos foram condenados pela Auditoria da 5ª Região Militar, a 2 e 4 anos de prisão. Entre os militantes, um dos primeiros a cair foi Aluizio Palmar, do MR-8, que em 2005 publicou o livro Onde foi que vocês enterraram nossos mortos, relatando o trágico destino que teve o grupo guerrilheiro de Onofre Pinto, traído e executado ao entrar em Foz do Iguaçu, em 1974. Oriundo do primeiro MR-8, de Niterói, Aluizio desmobilizava as bases da organização no Oeste do Paraná, quando foi preso em abril de 69. Depois dele caíram mais quatro na região, e os demais em Curitiba e no Rio. Enfim, por aqui foi um corre-corre geral. O autor destas linhas deixou o país em março de 69. Seu poema “Saudação a Che Guevara”, pregando a luta armada e panfletado antes do AI-5, foi parar no DOPS, nas mãos do Coronel Bianco. Ninguém mais sabia de ninguém. Os que não foram presos se esconderam ou fugiram. Daquela turma de Curitiba muitos nos reencontraríamos anos depois e longe daqui. Só fui rever o Vitório Sorotiuk e o Luiz Felipe Ribeiro, companheiros de Direito da Federal, no Chile socialista de Salvador Allende, em abril de 72, naquela bela Santiago, florida de revolucionários.
O AI-5 sufocou os últimos suspiros da democracia. Fechou o Congresso, rasgou a Constituição, amordaçou a imprensa, suspendeu o hábeas corpus, cassou políticos, demitiu funcionários, transferiu e reformou militares, foi enchendo as prisões e abrindo os caminhos do anonimato, os becos da clandestinidade e a via crucis da perseguição, da incomunicabilidade, da tortura, do desaparecimento e da morte. Fora desse contexto, a vida do povo corria normalmente. Sem uma visão crítica do processo histórico, tudo fluía sem maiores questionamentos. “A massa não pensa”, como dizia Gustave Le Bon. Estávamos às vésperas do carnaval de 69, a Copa de 70 estava a caminho e a televisão se instalando no país. Cada cidadão tinha o seu dia a dia: alienado ou engajado. Era, por outro lado, também tudo aquilo que Jamil Snege retratou no seu grande livro Tempo sujo, publicado naquele ano. Quarenta anos depois, muitos de nós que testemunhamos tantos fatos, podemos afirmar que 1968 foi o ano que tatuou nossas almas com as tintas luminosas da paixão revolucionária e com as cicatrizes indeléveis da perplexidade, do pânico e do sofrimento. Hoje aqui viemos, alegres por podermos partilhar nossas lembranças, por ainda preservarmos nossos sonhos e estender, com estas palavras, nossas mãos solidárias aos sobreviventes de tantas trincheiras. Mas estamos aqui, também e, sobretudo, para rogar a um poder maior que leve para além das fronteiras do encanto o nosso imperecível reconhecimento àqueles que nunca hesitaram em comprometer seus passos, àqueles que nos ensinaram a dizer sim-sim e não-não. Aqueles que rumaram para as estrelas para semear o amanhã. Aqueles cuja bandeira tremula nos punhos da pátria agradecida e a quem o próprio Che nos ensinou a dizer: hasta siempre."
(continua)
(continua)
Manoel de Andrade, in “ As Palavras no espelho”, Escrituras Editora e Distribuidora de Livros Ltda, São Paulo, Brasil, 2018, pp 32-41
A luta de todos os tempos!... A liberdade não se oferece, nem se aceita sem mais quê. A liberdade conquista-se, cada um por si, um por todos, todos por um. Nunca o "sangue, suor e lágrimas" churchiliano foi tão real e autêntico!
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